Em sua 78ª edição, um dos mais importantes festivais do mundo do cinema chegou ao fim no dia 24 de maio, após ter tido início em 13 de maio, na charmosa cidade de Cannes, na Riviera Francesa. Ao longo de duas semanas, o evento destacou produções que transitaram de dramas históricos a thrillers políticos, revelando cineastas estreantes e consagrando nomes já estabelecidos, lado a lado. Mais do que nunca, o festival de Cannes trouxe à tona discussões sobre representatividade, pluralidade geopolítica e o cinema como potente instrumento de crítica social.
Sob a presidência de Juliette Binoche, o júri privilegiou obras que refletem as tensões sociais contemporâneas, além de narrativas pouco exploradas. A edição de 2025 reafirmou Cannes como um palco essencial para o diálogo entre arte, política e cultura no cenário global.
Brasil se fez mais presente do que nunca!
O evento foi dominado por brasileiros: um filme nacional estreou e competiu pela Palma de Ouro – o prêmio de maior prestígio do festival; personalidades amplamente conhecidas desfilaram no tapete vermelho; e, para coroar, vitórias em categorias de peso, como Melhor Ator e Melhor Direção — conquistas que consagram, mais uma vez, o cinema nacional no cenário internacional.
Alessandra Ambrosio, Izabel Goulart e Isabeli Fontana chamaram atenção em Cannes, desfilando com toda a elegância e estilo que as tornaram reconhecidas mundialmente. No mesmo ritmo, as atrizes Marina Ruy Barbosa, Camila Queiroz, Camila Pitanga e Juliana Paes também se destacaram no festival, esbanjando charme e presença.
Mas os olhares brasileiros em Cannes tinham um foco quase único: O Agente Secreto, um thriller político entrelaçado com drama, dirigido por Kleber Mendonça Filho e protagonizado por um elenco estelar – Wagner Moura, Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone e Alice Carvalho. O longa foi o responsável por encher o coração brasileiro de esperança pela conquista da Palma de Ouro pela segunda vez na história.
Kleber Mendonça Filho já é conhecido em Cannes. Sua primeira conquista foi com Bacurau (2019), na categoria Prêmio do Júri. Com O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016) e Retratos Fantasmas (2023), ele já havia participado da Seleção Oficial.
Nessa nova produção, temos Marcelo, personagem de Wagner Moura, um professor universitário especializado em tecnologia que, em 1997, durante a ditadura militar no país, retorna a Recife, sua cidade natal, na tentativa de escapar de um passado violento e traumático. Entretanto, logo ele percebe que ali não encontrará a paz que buscava, devido à cidade estar vigiada pelo regime, e à tecnologia ser usada para controlar a oposição. Marcelo se envolve com grupos de conspiração contra o regime e precisa lutar para proteger quem ama, enquanto lida com dilemas pessoais. Mais uma vez, o diretor reforça sua postura de fazer críticas sociais e políticas através de suas obras.
A euforia já podia ser sentida antes mesmo da estreia da produção, que aconteceu no domingo (18), fazendo os olhos da crítica brilharem e levando a uma salva de palmas ininterrupta, com duração superior a treze minutos. A celebração começou com o diretor, os atores e membros da comitiva do Ministério da Cultura desfilando animados pelo tapete vermelho, acompanhados de uma banda de frevo, visto que o filme se passa em Recife, Pernambuco. A disputa foi entre o longa e outras 21 produções.
O reconhecimento do longa começou antes mesmo do anúncio do vencedor da Palma de Ouro e dos outros sete prêmios que compuseram a cerimônia. O filme já havia garantido dois prêmios paralelos de peso: o Prêmio da Crítica, concedido pela FIPRESCI, uma das associações de jornalismo de crítica mais respeitadas do mundo, e o Prix de Cinémas d’Art et Essai, entregue por exibidores de cinema que destacam produções com forte apelo para o mercado de salas de arte.
Na cerimônia oficial, Kleber voltou a subir ao palco, desta vez para receber o prêmio de Melhor Direção. E não parou por aí: ele também representou Wagner Moura, que entrou para a história como o primeiro ator brasileiro a conquistar o prêmio de Melhor Interpretação por um Ator no Festival de Cannes. Vale ressaltar que ganhar duas categorias da competição oficial é algo muito raro. Ver o cinema nacional alcançar esse feito deixa claro que, de fato, essa edição foi histórica e memorável.
O longa estreou com 100% de aprovação no Rotten Tomatoes, site que agrega críticas e serve como termômetro de produções. Além de ter recebido muitos elogios da crítica internacional: a Variety o definiu como um “deslumbrante drama de época”, enquanto o The Guardian não economizou elogios, chamando a obra de “visualmente e dramaticamente incrível em todos os sentidos”. Para finalizar, o The Hollywood Reporter afirmou que “esse será, sem dúvidas, um dos melhores filmes do ano”.
O Brasil foi celebrado como país de honra no Marché du Film, o maior mercado audiovisual do mundo, que reuniu produtores, distribuidores e cineastas, acontecendo simultaneamente ao Festival de Cinema de Cannes. A homenagem destacou o protagonismo brasileiro nesta edição, consolidando um momento histórico para o cenário audiovisual nacional.
“É um momento marcante para o Brasil, e estamos profundamente orgulhosos de sermos o país homenageado pela primeira vez”, afirmou Margareth Menezes, ministra da Cultura do Brasil durante a abertura do Marché du Film.
O acontecimento celebrou também os 200 anos de relações diplomáticas entre Brasil e França, com uma extensa programação: exibição de filmes em desenvolvimento, encontros entre profissionais e o lançamento de novas iniciativas de coprodução internacional. “Temos uma produção cinematográfica madura e diversa, com muito a contribuir para o mundo. Nosso cinema é uma ferramenta poderosa para promover reflexões e compartilhar nossa diversidade cultural”, completou Margareth em seu discurso.
CINEMA NACIONAL COMO REFERÊNCIA
O filme O Riso e a Faca, uma coprodução entre Brasil, Portugal, França e Romênia, conquistou o prêmio de Melhor Atriz na mostra Um Certo Olhar, a segunda mais importante do Festival de Cannes. A atriz cabo-verdiana Cleo Diára recebeu o troféu pela atuação no longa dirigido pelo português Pedro Pinho.
Inspirado em uma música de Tom Zé, o filme conta com forte presença brasileira, tanto no elenco quanto na equipe técnica. Mais de 30 profissionais nacionais participaram da produção, entre eles Tatiana Leite, Rodrigo Letier e Karen Akerman. No elenco, destaca-se o brasileiro Jonathan Guilherme, ex-jogador de vôlei e atual poeta, no papel de Gui, ao lado de Cleo Diára e Sérgio Coragem. O antropólogo brasileiro Renato Sztutman também integra o elenco, interpretando a si mesmo.
O filme narra a trajetória de Sérgio, engenheiro ambiental português que viaja à África Ocidental para trabalhar em um projeto rodoviário. Lá, ele se envolve com os moradores locais e passa a refletir sobre seu papel no mundo.
A conquista representa mais uma participação de destaque do Brasil em Cannes, evidenciando a diversidade e o talento da produção nacional em um dos festivais mais relevantes do cinema mundial.
Camila Pitanga, em uma participação especial, contracena com Gilberto Gil no curta Samba Infinito, que também ganhou projeção em território francês. O filme, dirigido por Leonardo Martinelli, foi exibido na importante mostra Semana da Crítica.
“Fazer parte de um curta, de cineasta expoente, é como se eu estivesse participando de um movimento de renovação do que é o ciclo do cinema”, declarou Camila. Ela ainda ressaltou o simbolismo de sua presença em Cannes, lembrando que é filha de Antônio Pitanga, ator que protagonizou O Pagador de Promessas (1962), até hoje o único filme brasileiro vencedor da Palma de Ouro.
a diversidade COMO pauta
A edição deste ano valorizou a diversidade, assim como a de 2024, mas sob uma perspectiva distinta. Em 2024, Greta Gerwig, roteirista e diretora de Barbie e Adoráveis Mulheres, presidiu o júri, dando destaque à representatividade e à igualdade de gênero na indústria cinematográfica, especialmente com a presença marcante de cineastas mulheres.
Na ocasião, Adriana Paz, Zoe Saldaña, Selena Gomez e Karla Sofía Gascón receberam conjuntamente o prêmio de Melhor Atriz por Emilia Pérez, num momento em que o filme ainda era celebrado, antes de ser abalado pela polêmica acusação de racismo envolvendo Gascón.
Agora, em 2025, a diversidade se destacou na geopolítica e na cultura. Exemplo disso é a composição plural do júri: Halle Berry (EUA), Payal Kapadia (Índia), Alba Rohrwacher (Itália), Leïla Slimani (França/Marrocos), Dieudo Hamadi (Congo), Hong Sangsoo (Coreia do Sul), Carlos Reygadas (México) e Jeremy Strong (EUA).
Além disso, a seleção oficial incluiu filmes de países como Egito, Ucrânia, China, África do Sul e Irã, reforçando o caráter global e diverso do festival.
Esse movimento de descentralização ficou ainda mais evidente com a participação do Iraque, pela primeira vez na história do festival, com o filme The President’s Cake, exibido fora de competição. Outro destaque veio das Filipinas: o curta Imago, dirigido por Raymund Ribay Gutierrez, conquistou na sexta-feira (23/5) o prêmio Olho de Ouro de Melhor Documentário, reforçando a potência do cinema produzido fora dos eixos tradicionais da Europa e dos Estados Unidos.
Além disso, uma das sessões mais disputadas do festival foi protagonizada por Bono Vox, cuja trajetória foi contada no documentário História de Surrender, dirigido por Andrew Dominik — mais uma produção que, embora focada em uma figura global, emerge de uma perspectiva que também escapa aos circuitos convencionais do cinema hegemônico.
o destaque foi feminino
Embora os esforços deste ano estivessem concentrados na pluralidade geográfica e, consequentemente, cultural, o filme que abriu o festival foi Partir un jour, produção francesa que marca a estreia da diretora Amélie Bonnin em longas-metragens. A escolha foi histórica, pois, pela primeira vez, um filme de estreia dirigido por uma mulher fez a abertura do Festival de Cannes.
Na comédia dramática e musical, Cécile está prestes a inaugurar seu próprio restaurante em Paris, realizando um sonho, quando, subitamente, seu pai sofre um ataque cardíaco e ela precisa voltar à cidade natal. Lá, reencontra uma paixão da adolescência e revive memórias que abalam todas as suas convicções.
cinema e política são indissociáveis
Outro ponto marcante foram os discursos políticos de Juliette Binoche no primeiro dia do festival. A presidente prestou homenagem às vítimas das guerras na Ucrânia e em Gaza. Na mesma linha, Robert De Niro, que, ao lado de Denzel Washington, recebeu a Palma de Ouro Honorária, aproveitou a ocasião para criticar o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. “Estamos empenhados em preservar a democracia que por tanto tempo foi tida como certa”, declarou o ator, ressaltando que os artistas representam uma ameaça para regimes autoritários e tendências fascistas.
Ainda no campo das críticas à realidade atual, na terça (20), Julian Assange denunciou as ações israelenses na Faixa de Gaza e nos territórios palestinos, apontando violações aos direitos humanos. Sua trajetória e os anos em que esteve detido por ordem judicial são ilustrados no documentário The Six Billion Dollar Man, que recebeu um prêmio especial do júri.
A passagem de Assange por Cannes, sua primeira aparição pública após a libertação em junho de 2024, foi marcante também pela camiseta que usava: na frente, os nomes de 4.986 crianças palestinas mortas em ataques israelenses; nas costas, a frase “Pare Israel”.
AS NOVIDADES QUANTO AOS TRAJES
O festival implementou um novo código de vestimenta, proibindo nudismo e trajes volumosos, medida que gerou polêmica. Segundo a organização, a decisão visa garantir decoro e melhorar a logística de acesso ao teatro. Ainda assim, vestidos com caudas foram vistos desfilando pelo tapete vermelho.
DEZENOVE MINUTOS DE PALMAS? É ISSO MESMO!
Sentimental Value foi tão aclamado que entrou para o top 3 dos filmes mais ovacionados da história do Festival, recebendo uma salva de palmas superior a qualquer outro filme em competição neste ano. Esse entusiasmo antecipava a premiação na categoria Grande Prêmio, conquistada dias após sua primeira exibição, no dia 21.
Dirigido pelo norueguês Joachim Trier, o drama acompanha duas irmãs adultas, Nora e Agnes, que reencontram seu pai ausente, Gustav — um famoso diretor que tenta retomar a carreira, escrevendo um roteiro para Nora, que também é atriz. Diante da recusa dela em participar, ele convida uma jovem atriz americana, interpretada por Elle Fanning, cuja carreira está em ascensão, para o papel. Aos poucos, essa nova presença passa a integrar a dinâmica familiar.
O elenco conta ainda com Renate Reinsve, que já havia trabalhado com Trier em A Pior Pessoa do Mundo (2021) , filme que também estreou em Cannes e lhe rendeu o prêmio de Melhor Atriz, e Stellan Skarsgård, um dos mais respeitados e versáteis atores suecos do cinema internacional.
A VOLTA DE JENNIFER LAWRENCE
Após um período afastada da mídia devido à sua segunda gravidez, Jennifer Lawrence retornou a Cannes com toda a sua elegância. Ela protagoniza o longa-metragem Die, My Love, cuja atuação tem sido amplamente elogiada. Ao seu lado, Robert Pattinson também desfilou pelo tapete vermelho.
Baseado no romance de Ariana Harwicz, o filme narra a história de uma dona de casa que vive isolada no interior dos Estados Unidos e enfrenta graves problemas de saúde mental, lutando contra uma psicose enquanto tenta conciliar a maternidade com um casamento conturbado.
palma de ouro e outros sete prêmios mais importantes
Um grande apagão atingiu o sudeste da França no sábado (24), afetando cerca de 160 mil residências, incluindo Cannes e Antibes. Apesar do transtorno, a organização do Festival garantiu que a cerimônia de encerramento da 78ª edição aconteceria “em condições normais”, graças ao sistema de energia independente do Palais des Festivals. “Todos os eventos e exibições programados ocorrerão conforme o planejado”, informou o comunicado.
Sessões fora do recinto principal, como as realizadas no Cineum, foram temporariamente suspensas, mas retomadas assim que a energia foi restabelecida. A causa do apagão ainda não foi esclarecida.
Na disputa pela Palma de Ouro estavam 22 filmes, mas o vencedor foi It Was Just an Accident, do diretor iraniano Jafar Panahi. O filme acompanha cinco personagens que sequestram um homem com uma perna protética, acreditando que ele seja o responsável por tê-los torturado na prisão e destruído seus futuros. Contudo, como todos estavam vendados durante o encarceramento, nenhum é capaz de confirmar sua identidade com certeza.
“A arte mobiliza a energia criativa da parte mais preciosa e viva de nós. Uma força que transforma a escuridão em perdão, esperança e vida nova”, declarou Juliette Binoche, presidente do júri, ao anunciar o prêmio.
Esse discurso dialoga com a trajetória de Panahi, cineasta que já foi perseguido e preso diversas vezes pelo regime iraniano, acusado de fazer propaganda contra o governo. Ele foi libertado após uma greve de fome e, mesmo proibido de filmar, continuou produzindo obras clandestinamente — como foi o caso deste filme, rodado em segredo e sem autorização oficial.
PRÊMIO DO JÚRI: UM EMPATE MARCANTE
O Prêmio do Júri foi dividido entre dois filmes: o espanhol Sirat, de Oliver Laxe, e o alemão Sound of Falling, de Mascha Schilinski.
Sirat é um drama embalado por música eletrônica, que se desenrola numa viagem de carro pelo deserto marroquino, onde um pai e seu filho buscam pela filha desaparecida, que teria sumido durante festivais. “Viva as diferenças, viva as culturas e viva o Festival de Cannes”, declarou Laxe ao ser premiado. Curiosamente, o cineasta, parisiense e filho de imigrantes, recebeu prêmios em todas as suas participações no Festival.
Em contraste, Sound of Falling é um drama coral que narra a trajetória de quatro gerações de mulheres ligadas por uma propriedade rural em Altmark, mergulhando no luto e nas violências dentro do ambiente doméstico.
O Prêmio Especial do Júri foi para Resurrection, do diretor chinês Bi Gan, uma produção que entrou na lista de participantes poucos dias antes do início do Festival.
Neste enigmático filme de ficção científica, uma mulher se vê, de repente, jogada em um futuro distópico e devastado, um cenário pós-apocalíptico. Lá, ela tenta consertar um homem que é meio robô, meio humano, enquanto, de maneira quase poética, reconstrói também fragmentos da própria história da China.
A dupla Jean-Pierre e Luc Dardenne levou o prêmio de melhor roteiro, com Jeunes Mères. Os irmãos belgas, que já venceram duas Palmas de Ouro, com Rosetta (1999) e A Criança (2005), trouxeram desta vez um drama sobre cinco mulheres adolescentes que são acolhidas em um centro onde recebem todo tipo de suporte em suas jornadas como mães jovens para aprenderem a cuidar de seus bebês, podendo ficar com esses e exercer a função de mãe ou podendo também colocá-los posteriormente para adoção. Jessica, Perla, Julie, Ariane e Naïma lutam por uma vida mais digna, tanto para elas quanto para seus filhos.
Nadia Melliti levou o prêmio de Melhor Atriz, com La Petite Dernière. Hafsia Herzi assina a adaptação do romance homônimo de Fatima Daas, que acompanha a trajetória de emancipação da filha mais nova de uma família de imigrantes argelinos, quando essa deixa sua família no subúrbio para estudar filosofia em Paris.
Ao longo da história, a jovem, que também vive o processo de descobrir sua hosexualidade como mulher e então, enfrenta o desafio de se afastar, pouco a pouco, das tradições, especialmente as que resultam da educação religiosa que recebeu e que sempre fizeram parte de sua vida.
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O artigo acima foi editado por Sophia Claro.
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