Na obra A Sociedade do Espetáculo, Guy Debord analisa como, nas sociedades contemporâneas, a realidade é substituída por representações espetaculares, transformando tudo em imagem e mercadoria — inclusive a política. Essa lógica se manifesta com clareza na transformação dos debates políticos em produtos de entretenimento, onde o conteúdo muitas vezes cede lugar à performance, à retórica vazia e à criação de personagens midiáticos.
Assim como na moda, esses debates seguem tendências, são consumidos por sua estética e impacto emocional, e não necessariamente por seu conteúdo ou profundidade. Nesse contexto, o espetáculo político não visa esclarecer ou construir o debate democrático, mas capturar a atenção do público, funcionando como mais um episódio de uma narrativa dramatizada para gerar engajamento, audiência e polarização — exatamente por substituir a vivência autêntica pela representação encenada.
Política como objeto de autossatisfação
Quando as propostas políticas tornaram-se pura demagogia? Ou pior, quando o público passou a se satisfazer apenas em ouvir e gozar de boas mentiras? Uma prova disso foi a campanha municipal de 2024, que obteve um número recorde de debates, e muitos deles com troca de farpas e insultos públicos.
Aparentemente, há certa regressão da cognição humana e voltamos aos primórdios da civilização. Somos plenos monarcas sentados em sofás estofados em frente à uma televisão de 40 e poucas polegadas, degustando humilhações como quem frequenta punições em praça pública como em séculos passados, assistimos a enfrentamentos televisionados e tomamos um lado, torcemos como para um time de futebol. Para a prosperidade da nação? Ou apenas pelo prazer de ocupar o “lado” certo?
Quem é o verdadeiro palhaço no circo dos debates?
Após a última eleição municipal, disputada em 2024, novas regras foram impostas para os debates: cadeiras parafusadas no chão, expulsão automática de quem partisse para agressão física ou verbal e suspensão do direito de fala em casos de infração.
Isso porque durante um debate na TV Cultura o candidato à prefeitura de São Paulo, Pablo Marçal (PRTB), fez penosas acusações contra José Luiz Datena (PSDB), em reação, Datena arremessou duas vezes uma banqueta contra Marçal. O episódio foi classificado como agressão física e fez o debate ser interrompido com a expulsão do candidato do PSDB.
Esse episódio marcou o cenário político atual. A dualidade entre o absurdismo de um debate para a prefeitura que resultou na agressão entre os representantes públicos e o fanatismo político daqueles que insistem em “torcer”, mesmo diante da vergonha em rede nacional, mostra o apelo da mídia à espetacularização. Já se foram as épocas de “vamos poupar a população de um debate chulo”, agora são tempos de “eles querem ver, deixaremos que vejam”.
Nós assistimos tudo, cada poro, cada gota de suor de cada participante, nos tornamos psicanalistas, sabemos o porquê de cada fala e aguardamos a réplica, e tréplica. Torcemos como quem está em um estádio em dia de final, o problema é que estamos na prorrogação, nos encaminhando para os pênaltis, exaustos como cada jogador que jogou aquela partida. E, afinal, o que entendemos do restante do jogo? Nós ficamos tão sedentos pela vitória, por termos escolhido o “lado” certo, que há tempos não analisamos propostas, ligamos para debates rasos, estamos apenas focados no último gol. Queremos o show, mas os palhaços somos nós.
1 político vs 100 fanáticos: como as redes sociais se aproveitaram dessa tendência?
Os novos algoritmos que permeiam o uso das redes sociais propõem uma supervalorização de conteúdos curtos e editados, bombas de dopamina, que dependem 100% da absorção do público. E incrivelmente, o que atrai homo sapiens evoluídos do século XXI não são debates políticos bem argumentados e civilizados, mas sim brigas. Além do apelo humorístico, os formatos trazem temas tão irrelevantes que o único foco é o conflito.
O formato do debate parece ideal para as redes, favorece o confronto e não o diálogo, especialmente quando transmitido ao vivo, ele é montado para promover o embate direto. Está aí a receita perfeita para o bolo de desinformação: uma xícara de tensão, colheres de frases de efeito e uma pitada de conflito, e não se esqueça de pré-aquecer o forno da ignorância. “Tcharam”: você terá uma receita prontinha para viralizar nas redes.
A partir da lógica de vídeos curtos, quanto mais um conteúdo é capaz de gerar amor ou ódio, maior também o seu retorno. Isso, ligado à torcida organizada do time “minha opinião é sempre a correta”, dá origem aos debates em formatos alternativos. 1 Treinador vs 30 gordos; 1 conservador vs 20 esquerdistas; 1 Cristão vs 25 ateus; as possibilidades são inúmeras.
Esses exemplos enaltecem a polarização e apelam ao sentimento do usuário de Instagram ou TikTok, que ao ver a sua ideologia sendo contrariada, vomita suas frustrações em toda e qualquer caixa de opiniões. Nos comentários, ambas as ideologias estão presentes e desfrutam do mesmo sentimento: “esse cara passou vergonha”. E agora? A vergonha será atribuída a quem? Ao conservador? Aos 20 esquerdistas? Ou ao fanático que comenta furiosamente em debates das redes sociais?
Política virou entretenimento
Eleições brasileiras de 2022. Debates políticos nos Estados Unidos da América em 2024. Ambos representam a espetacularização da imagem e objetivam atingir o julgamento público, porque é lá que se localiza o fanatismo.
Um exemplo prático é o que aconteceu nas eleições dos Estados Unidos. A população considera tão absurda a ideia de uma mulher negra assumir um cargo de presidente da América que aceita a fala do candidato (e atual presidente) Donald Trump afirmando que imigrantes ilegais em Springfield, Ohio, estavam comendo animais de estimação, incluindo gatos e cachorros.
A ascensão dos debates poderia ser positiva, pois aumenta o alcance da discussão pública, mas paradoxalmente tem esvaziado a reflexão. Nos sentimos como gladiadores no Coliseu, tratamos política como uma religião pautada pela fé e lutamos por ela. Porém, somos meros espectadores determinando o algoritmo. Na era da sociedade do espetáculo, tudo se transforma em imagem. Políticos performam, eleitores consomem e a política vira um show. Não se trata mais de quem tem as melhores propostas, mas de quem rende mais visualizações.
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O artigo abaixo editado por Marcele Dias.
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