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Culture

“Se assumir negro no Brasil é muito dolorido”: Semayat Oliveira, Jornalista Cofundadora do ‘Nós, Mulheres da Periferia’, Discorre Sobre o Discurso “Ain’t I a Woman”?

This article is written by a student writer from the Her Campus at Casper Libero chapter.

Onde há muito barulho, alguma coisa deve estar fora do lugar. O ano era 1851 e Sojourner Truth – ex-escrava, abolicionista negra e ativista pelos direitos da mulher – proferia o que, 170 anos depois, ainda seria um discurso atual.

“Aquele homem ali diz que mulheres precisam ser ajudadas a entrar em carruagens, carregadas sobre valas e que devem ter o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém me ajuda a entrar em carruagens ou a atravessar poças de lama, nem me dá qualquer melhor lugar. E eu não sou uma mulher?”

As palavras de Sojourner são importantes porque refletem a história de incontáveis mulheres e retratam as diferenças nas demandas do feminismo negro. Para Semayat Oliveira, escritora, jornalista e cofundadora do Nós, Mulheres da Periferia, o discurso é atual em muitos aspectos.

Campo afetivo e social

A hiperssexualização de corpos femininos negros ainda é realidade no Brasil. De acordo com estudo realizado pela Rede de Observatórios da Segurança, mulheres pretas são as mais violentadas sexualmente. Dados do relatório A cor da violência: Uma análise dos homicídios e violência sexual na última década indicam que, em 2017, esse grupo foi vítima de 73% dos casos de abuso no país.

Em entrevista, Semayat remeteu à música Ain’t I a Woman, – pautada no mesmo discurso de Sojourner – composta e performada por Luedji Luna. A canção consiste em uma releitura da condição das mulheres negras brasileiras e questiona a ideia de que seus corpos sejam feitos para o prazer.

“Que tipo de mulher você acha que mereceria ser tratada com respeito e dignidade? Que tipo de mulher não deveria ser forte o tempo todo?” – Semayat denuncia a negação à subjetividade da mulher negra. Segundo a jornalista, a problemática também se encontra no campo social: 

“Até hoje as mulheres negras fazem o trabalho mais braçal, o que demanda muito mais do corpo. Quando chegam ao final da vida, nossas mães e avós já acumularam uma série de doenças, sejam elas mentais, por um cansaço permanente desde muito cedo, ou físicas, por conta do constante uso da força”.

A escritora defende que a condição à qual estão sujeitas através dos subempregos consiste em um uso desrespeitoso, violento e exaustivo do corpo. São pagos valores irrisórios, insuficientes para a sustentação e que contribuem para a manutenção dessas mulheres abaixo da linha de pobreza. Reivindica-se condições dignas de existência: trabalho registrado, que permite a emancipação deste ciclo.

“Nos últimos anos, com o aumento de políticas públicas e com as cotas raciais, temos mais mulheres negras no mercado de trabalho. Ainda assim, elas estão abaixo dos homens negros, mulheres brancas e homens brancos. Fomos retiradas do nosso intelecto, humanidade, capacidade de ser tão inteligente quanto. Isso se mantém até hoje e se reflete no nosso salário, na condição imposta ao nosso povo, no fato de sermos majoritários e morrermos mais cedo que a população branca. Ser uma mulher e lutar por seus direitos não basta quando se mora em um país racista. Não basta defender a equidade sem considerar que a questão de raça tira a humanidade de mulheres e homens negros. Portanto, sim, pensando em acesso a direitos sociais e vida digna, nós ainda não somos tratadas como as mulheres brancas. É um discurso atual”.

Autorizando a morte de pessoas específicas

Semayat também discorreu sobre o acesso à saúde no país. O Brasil possui um dos melhores sistemas de saúde do mundo, fornecendo desde atendimentos primários até vacinas, remédios e procedimentos complexos. O mesmo não ocorre em países como os Estados Unidos, por exemplo, onde cabe ao próprio indivíduo subsidiar seu tratamento.

“Se ele [o SUS] funcionasse de forma efetiva, se houvesse uma classe política interessada, não teríamos uma maioria de pessoas negras morrendo, porque sabemos que a população preta brasileira é a que menos tem condições de bancar um plano de saúde. Nos EUA, ela também é a que mais morre, mas aqui é por interesse: existe um interesse em não fazer o SUS funcionar, um interesse na privatização, e isso ficou evidente com a pandemia e a discussão sobre compra das vacinas por empresários que querem se beneficiar. Enquanto ainda batalhamos para imunizar a sociedade de uma forma geral, a saúde chega com mais agilidade para pessoas específicas, que certamente não são negras e nem as mais empobrecidas do país”.

O Mapa da Desigualdade lançado em 2020 pela Rede Nossa São Paulo revela que a expectativa de vida na Cidade Tiradentes – distrito com 56,1% da população negra – é de 58,5 anos, enquanto a de Alto de Pinheiros – região com 71,9% da população branca – é de 81,1.

“Temos uma política de morte no país. A pandemia atinge mais aos negros. Autorizamos a morte de pessoas específicas”. 

Sobre ser preta 

Nascida e criada no bairro periférico Jardim Miriam, zona Sul de São Paulo, hoje, aos 32 anos, Semayat paga as próprias contas e sobrevive como escritora e jornalista. “Sou uma mulher negra que está fora da curva de circunstâncias nas quais mulheres negras vivem em meu país”. Isso se deve ao fato de seus pais estarem articulados politicamente com a condição do racismo no Brasil. Preocupados em fazer com que ela e sua irmã furassem este ciclo de violência e alcançassem outros espaços, conseguiram com que elas crescessem conscientes de sua situação. 

“Quando eu nasço e sou criança, não sei que sou negra. Sei que sou uma menina. O que me mostra isso é o contexto e a cultura brasileira. É estar na escolinha e ser agredida porque uma criança de 6, 7 anos acha que tem o direito de fazê-lo. Como o mito da democracia racial é ainda muito forte, se assumir negro no Brasil é muito dolorido. Exige uma luta constante”.

Dessa forma, desde muito cedo Semayat teve que aprender a se defender e se posicionar. A lutar para ser respeitada. O entendimento acerca da discriminação racial tem aumentado com o número de artistas conscientes, redes sociais, influencers e trabalhos como o documentário AmarElo: É Tudo pra Ontem, do Emicida. Semayat acredita que “ser negro atualmente é fazer parte dessa manada que tem retomado sua história”. Mas isso não deixa de ser cansativo. “Às vezes eu só queria ser uma mulher, trabalhando”.

Sobre silenciamento

A escritora mencionou o debate realizado em 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Nele, Semayat, Conceição Evaristo e Maria Clara Araújo, ativistas do movimento negro, conversaram sobre o fato de atualmente pessoas pretas terem mais oportunidades para se posicionar, mas também terem seu silêncio negado. “É como se todo mundo esperasse que eu fosse falar de todos os casos de racismo. Houve um momento da minha vida em que eu me obrigava mais a isso, em que eu me sentia mal quando não me colocava. Hoje, entendo que temos mais jornalistas – negros ou não – comprometidos com essa pauta e que não é uma tarefa só minha. Então, me autorizo a não falar”.

Há duas formas de silenciamento. A primeira consiste em retirar o direito de fala de uma pessoa ou grupo. Historicamente, pessoas negras têm falado pouco. Outra maneira de perpetuar esse silêncio é impedir o avanço do debate. Semayat conta que condicionar pessoas negras a discorrer sempre sobre o mesmo assunto, supondo que haja abertura para que elas falem, é apenas conferir-lhes o papel específico da diversidade.

“Precisamos avançar o debate no Brasil. Que as pessoas se preparem para conversar sobre o assunto. Isso significa ler nossos autores, senão repetimos o ciclo de silenciamento. Não basta levar pessoas negras a um evento, não se preparar para aquilo e reservar-lhes todas as perguntas de caráter racial. Não é interessante que seja assim”.

Para Semayat Oliveira, a única forma de se alcançar um país mais próspero é fazer um trabalho de deslocamento e compreensão do lugar do outro.

“O que a gente precisa agora é que as pessoas se desloquem e entendam o que são as periferias, quem são os nossos autores, o que significa ser uma pessoa negra no Brasil. Não dá mais para não saberem o que é o Grajaú, o Capão Redondo, Jd. Miriam e a Cidade Tiradentes, por exemplo. As pessoas precisam transitar pela cidade, andar, com muito respeito, chegando devagar mesmo, porque a gente é muito ressabiado. Mas precisam fazer esse deslocamento intelectual e físico para entenderem o país em que vivem. Senão, vamos continuar à míngua: um país extremamente pequeno, mesmo diante de nossa magnitude. Um país intelectualmente mais parecido com uma província, com pessoas morrendo de fome e violento para todos. Eu convidaria as pessoas a se deslocarem”.

Semayat recomenda

Mulheres, Raça e Classe – Angela Davis

A Transformação do Silêncio em Linguagem e em Ação – Audre Lorde

Insubmissas Lágrimas de Mulheres – Conceição Evaristo

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A matéria acima foi editada por Laura Ferrazzano

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