A celebração mundial do Dia do Teatro, no dia 27 de março, reforça inúmeros aspectos acerca da importância desta comemoração para a história da cultura nacional e internacional. Criada em 1961 pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), a data tem como objetivo divulgar a relevância do teatro e homenagear artistas e demais profissionais que tornam possível a existência da quinta arte.
Existindo desde a Antiguidade, o teatro é um dos modelos de manifestação artística mais longevos observados na humanidade, o qual foi palco para dramas, tragédias, paixões e revoluções que, entre outros fatores, ajudaram a moldar o pensamento crítico social. No Brasil, a presença teatral reflete a cultura nacional, mas acima de tudo mostra-se como símbolo de resistência e memória.
Surgimento do Teatro no Brasil
Considerada a quinta arte, o teatro surgiu no Brasil no século XVI por meio dos padres jesuítas, que realizavam representações dos textos religiosos para ensinar as doutrinas católicas aos indígenas. Tal feito fez com que o padre José de Anchieta fosse considerado o primeiro dramaturgo do país. Com o passar dos anos, em 1808, a chegada da família real portuguesa em terras brasileiras também se mostrou um marco para a história do teatro nacional, visto que a realeza trouxe consigo inúmeros artistas e companhias teatrais. Entretanto, os enredos dos espetáculos performados nesta época retratavam apenas os dilemas do universo europeu, especialmente os relacionados à realeza.
Somente a partir do século XX o Brasil presenciou a criação de um universo teatral voltado para a cultura brasileira e nossos costumes, visto que as revoluções artístico-culturais da época, como o Modernismo e o Tropicalismo, contribuíram para a construção da identidade do teatro brasileiro que conhecemos hoje. Um exemplo importante desta nova noção de teatro é o Teatro do Oprimido, um modelo pedagógico criado por Augusto Boal em 1970, que utilizava da técnica da “quebra da quarta parede” para interagir diretamente com o espectador e provocar-lhe inquietações, estimulando o desenvolvimento de consciência política e social daqueles que assistissem as peças guiadas por este método.
A importância do Oficina e do Arena para a história da arte brasileira
Como citado anteriormente, grande parte da história do teatro brasileiro esteve atrelada à resistência e a busca pelo caráter identitário social, mas estes aspectos se tornam mais nítidos quando analisamos a importância sócio-cultural dos teatros Oficina e Arena.
Fundado em 1958 por José Celso Martinez Corrêa – Zé Celso-, o Teatro Oficina tornou-se um dos principais símbolos de inovação e resistência artística na ditadura militar brasileira. Destacando-se por trazer uma arquitetura ousada que inseriu o palco entre as estruturas suspensas destinadas à plateia, o espaço foi responsável por abrigar espetáculos como Roda Viva e O Rei da Vela que teciam críticas abertas ao regime ditatorial e a exploração do povo e intensificação das desigualdades sociais por parte da burguesia, respectivamente.
Graças a esses episódios, estas e demais peças foram censuradas, assim como o espaço foi fechado pelos militares, gerando a necessidade de exílio de alguns membros da companhia, como o próprio Zé Celso.
Além do Oficina, outro teatro de grande relevância para o Brasil é o Arena. Fundado entre as décadas de 1950 e 1960, o teatro Arena também propôs uma nova arquitetura espacial, ao dispor a plateia em círculo ao redor de um palco central, mas seu destaque principal esteve atrelado à performance de espetáculos que realizavam denúncias sociais e sobre a ditadura militar, como Eles Não Usam Black Tie, além de abordarem temáticas de valorização das raízes da história nacional, como na peça Arena Conta Zumbi.
Primeiro ato: os clássicos atemporais do Brasil
Ainda que o teatro apresente o diferencial de unir a dança e a literatura para a conceber obras performadas em tempo real, esta manifestação artística se assemelha às artes visuais e plásticas por levar em consideração as peculiaridades do contexto histórico-social em que seus autores estão inseridos. Abrangendo temáticas que transitavam entre o elogio e a crítica, o otimismo e o pessimismo, a prosperidade e a miséria, e acima de tudo, o progresso e retrocesso de nosso povo, a literatura teatral brasileira consagrou-se como atemporal e continua a ensinar-nos constantemente sobre a necessidade de desenvolvermos o pensamento crítico e os perigos que a ausência da arte pode trazer para a nossa liberdade.
À seguir, estão reunidas seis peças de teatro que marcaram a história nacional, destacando-se por suas narrativas que ainda são vistas no cenário atual.
1. O Auto da Compadecida
Uma das maiores obras-primas do país foi escrita por Ariano Suassuna em 1955 e adaptada ao teatro em 1956, quando foi apresentada no Teatro Santa Isabel. O Auto da Compadecida, dividido em três atos, se passa no sertão nordestino e tem como personagens principais os amigos Chicó e João Grilo.
A narrativa é permeada pelas inúmeras aventuras das duas figuras, as quais iniciam a obra tentando persuadir um padre à realizar o enterro de um cão em troca do dinheiro que o animal havia deixado em seu testamento, passando pela mentira do gato de “descomia” dinheiro e finalmente chegando na gaita que ressuscitava os mortos quando tocada.
A trama chega ao seu ápice quando a dupla tenta enganar um bando de cangaceiras com a invenção da gaita mágica que não acreditam na mentira e matam João Grilo. Chegando ao purgatório, o amigo de Chicó se encontra com as demais personagens – também mortas pelos cangaceiros- para terem seus destinos decididos pela Nossa Senhora.
Com uma narrativa envolvente, cômica e recorrente, a obra mostra-se de extrema relevância para a representatividade do povo nordestino, além de trazer as lendas que permeiam a cultura deste povo. Outro ponto indispensável abordado são as denúncias contra as injustiças sociais, a concentração de poder nas mãos de líderes políticos e religiosos, bem como o sistema de represália criado pelos coronéis.
2. Morte e Vida Severina
Vencedor do prêmio internacional do Festival de Nancy, na França, o texto teatral escrito por João Cabral de Melo Neto, em 1955, é um auto de natal nordestino que narra a jornada de mais um entre tantos Severinos.
A narrativa aborda a vida de Severino, lavrador nordestino que vive em situação de pobreza causada pela seca no Nordeste. Com o objetivo de mudar sua vida, a personagem sai em uma jornada rumo ao Sudeste do Brasil, a fim de encontrar um emprego digno.
No entanto, o cenário que encontra durante o trajeto é devastador e assolado pela morte, situações que moldam a sua visão de mundo e, muitas vezes, fazem-no refletir se há algo além desta condição para se viver.
A partir de um ponto de vista crítico sobre as migrações de nordestinos que ocorriam na década de 1950, João Cabral de Melo Neto aponta para as dificuldades enfrentadas pelos indivíduos que, na busca de empregos nas construções de grandes cidades no Sudeste, sofriam com a fome, sede e a falta de perspectiva de melhora para suas condições. Com uma temática que ainda marca o cenário brasileiro atual, Morte e Vida Severina traz discussões sobre a permanente marginalização da população nordestina, principalmente aqueles que residem no semiárido, denunciando às autoridades que não desenvolvem políticas públicas para o combate da fome e da seca.
3. O Rei da Vela
Escrita em 1937 por Oswald de Andrade, a peça O Rei da Vela foi adaptada para os palcos apenas em 1967, quando Zé Celso trouxe a obra oswaldiana para dentro do Teatro Oficina.
Tornando-se o marco da inauguração do Tropicalismo no teatro, a peça narra a história de Abelardo I, um empresário que lucra com a venda de velas em um país no qual a população pobre não pode pagar por energia elétrica. Explorando as relações pessoais guiadas pela disputa pelo controle financeiro e de influência, o autor denuncia o jogo de interesse realizado pela burguesia que buscava apenas o lucro pessoal em meio ao cenário que ainda sentia os efeitos da crise financeira de 1929. Com a maestria de sua crítica satírica, Oswald de Andrade provoca ao expor as desigualdades sociais e mostrar a posição de subserviência do Brasil na geopolítica comandada por países capitalistas.
4. Roda Viva
Roda Viva é uma comédia musical que nasceu em meio ao endurecimento do regime militar, em 1968, mesmo período no qual foi performada pela primeira vez no Teatro Oficina. Escrita por Chico Buarque, a peça teatral desafiou a censura da ditadura militar ao criticar a sociedade de consumo e a violência institucionalizada que marcaram o Brasil da época.
Ao condicionar os corpos dos indivíduos como engrenagens que compunham a “roda viva” do capitalismo, a narrativa conta a história de Benedito da Silva, um cidadão comum que é transformado em Ben Silver devido à indústria da massificação cultural. Durante todo o enredo, o personagem principal precisa mudar o seu estilo musical constantemente para acompanhar a demanda do mercado e, quando decide parar com as mudanças, é descartado e substituído pela indústria.
Por meio do diálogo incessante com o público, a peça tornou-se um marco na história teatral brasileira por lutar pela liberdade de expressão e questionar o sistema da moral burguesa, comandado pelos ideais de família e propriedade privada da sociedade conservadora.
5. Eles Não Usam Black Tie
Uma das principais peças apresentadas no Teatro Arena, em 1958, foi escrita dois anos antes por Gianfrancesco Guarnieri e contou com grandes nomes da dramaturgia durante sua performance, como Fernanda Montenegro.
Eles Não Usam Black Tie revolucionou as obras até então por dar voz a operários e camponeses brasileiros, criticando o sistema de exploração do capitalismo. O enredo da trama baseia-se na história de Tião, um jovem que, na tentativa de não perder seu emprego e sustentar sua família, não se filia ao movimento dos metalúrgicos de sua empresa, que planejavam uma greve.
Ao personificar em Tião o discurso da meritocracia, o autor aborda temas como o controle ideológico que a burguesia exercia sobre o povo – afetando negativamente a luta de classes-, criando uma personagem que não participa da greve com a fantasia de que assumiria um cargo de chefia e ascenderia socialmente.
Permeada de temáticas como o alcoolismo, o racismo, a luta de classes e os conflitos familiares, a peça teatral de Guarnieri se tornou um marco na história do Arena e acabou impactando inclusive o cinema, visto que o futuro filme com o mesmo enredo viria a ganhar o Leão de Ouro no Festival de Veneza.
6. Arena Conta Zumbi
A peça de autoria de Gianfrancesco e Augusto Boal ganhou destaque ao inaugurar no Teatro Arena a técnica “Sistema Coringa”, método desenvolvido por Boal em que os atores rotacionam os papéis que desempenham.
Com a primeira apresentação em 1965, Arena Conta Zumbi trazia a narrativa da vida de Zumbi dos Palmares como metáfora para as mudanças que o sistema de governo vinha sofrendo após o golpe militar. Resgatando as raízes do povo brasileiro, o enredo narra a presença africana no Brasil, desde a chegada dos navios negreiros e a escravidão, até o surgimento dos quilombos e o papel fundamental desempenhado por Zumbi dos Palmares na resistência.
Transitando entre a narrativa e a realidade, a companhia teatral do Arena superou as dificuldades que a redução de elenco imposta pela censura os limitou e construiu uma atmosfera que comparava a repressão e a violência do sistema escravocrata ao regime ditatorial, provocando a plateia a se rebelarem como Zumbi e não aceitarem a opressão que lhes estava sendo imposta.
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O texto acima foi editado por Mariana Letizio.
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