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Descriminalização Da Maconha, Uma Questão De Saúde Pública: Como A Planta Pode Beneficiar Vidas

This article is written by a student writer from the Her Campus at Casper Libero chapter.

O artigo abaixo foi escrito por Giullyana Aya Lourenço e editado por Mariana Miranda Pacheco. Gostou desse tipo de conteúdo? Confira Her Campus Cásper Líbero para mais!

Segundo a Sociedade Americana de Medicina, os princípios ativos da maconha podem ser utilizados para tratar e diminuir sintomas de mais de quarenta doenças, como alzheimer, autismo, epilepsia, efeitos colaterais da quimioterapia e dores crônicas. Um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) já confirmou que a maconha é segura e funciona no tratamento de tipos de câncer e parkinson. A cannabis para fins medicinais tem mais de 5 mil anos de história e a planta possui mais de 480 compostos. Os dois principais componentes da planta são o THC, tetrahidrocanabinol, e o CBD, canabidiol, com potenciais terapêuticos já descritos.

“É um produto natural que não é maléfico para a nossa saúde, como o cigarro à base de tabaco. Ninguém olha feio assim para ele, para o charuto, cachimbo e até mesmo para o narguilé”, segundo a socióloga, filósofa, jornalista e professora universitária Joyce Flávia*, 39, moradora de um bairro periférico da cidade de São Paulo, que é a favor da descriminalização da maconha, faz o uso recreativo e convive com quem faz o uso medicinal da planta. Não existe uma legislação para coibir o uso com argumentos de que, cientificamente, é maléfico para a saúde. Além disso, a socióloga apoia a legalização, porém, com restrições, sem a utilização por menores de idade, por exemplo.

“Nunca vi em nenhum lugar, em algum veículo de comunicação um pai de família que foi, saiu pra um rolê, curtiu a tarde todinha fumando maconha, voltou pra casa e espancou a mulher e a família. Em compensação, isso com álcool acontece todo dia”. O boato de que “a maconha mata os neurônios” ou que “deixa louco”, para Joyce, é um argumento originado por desinformação e fake news que perduraram durante décadas. “Medicamentos utilizados em exames como a endoscopia geram uma  ‘brisa’, muitas vezes maior que a da maconha e ninguém fala nada”, disse a filósofa.

SURGIMENTO DA MACONHA

Os registros do uso da maconha são antigos e já existiam muito antes de sua proibição. O antigo imperador chinês Shen Nong, agricultor e pai da medicina chinesa, possui manuscritos sobre a planta, com origens de 2.737 a.C. O chá de maconha era prescrito para doenças como malária, gota e déficit cognitivo leve. Na Índia, a planta também era utilizada em rituais religiosos ou como medicamento. Já na mitologia, a cannabis era a comida favorita do deus Shiva e, por isso, tomar bhang, bebida à base da planta, seria uma forma de aproximação com a divindade. No Brasil, os “cigarros índios”, como chamavam a maconha, tratavam de asma e insônia. A planta também era utilizada como óleo hidratante, cicatrizante e analgésico.

Em 1839, William O’Shaughnessy, médico do exército britânico, fez a primeira publicação em jornal sobre a cannabis. Em uma viagem para a Índia, o doutor recorreu ao cânhamo, planta pertencente à espécie Cannabis sativa, para curar a sua filha, que estava sofrendo convulsões contínuas. O’Shaughnessy tentou ajudar a menina com soluções da época, como ópio e sanguessugas, porém, não adiantou. A garota apenas melhorou com o uso do cânhamo, utilizado como medicamento pelos indianos. Dessa forma, a maconha medicinal cresceu no continente europeu.

PROIBIÇÃO DA PLANTA

Em 1920, durante a Primeira Guerra Mundial, houve a Lei Seca nos Estados Unidos, com a proibição da fabricação, comércio, transporte, exportação e importação de bebidas alcoólicas, para os soldados não perderem a disposição do combate. Com o fim da proibição do álcool após treze anos, Harry Anslinger, comissário do escritório federal de narcóticos (FBN), conhecido também como o “czar antidrogas dos Estados Unidos”, vendo que os burocratas responsáveis pela ação, agora estavam com seus cargos ameaçados, realizou a campanha de proibição da maconha. A planta era o seu novo alvo e com a ajuda da imprensa norte-americana, disseminava falsas informações ligadas ao uso, como surtos psicóticos, roubos e assassinatos.

Harry queria convencer os políticos de que a maconha era uma droga pior que o ópio e heroína e, dessa forma, a planta foi proibida em 1937 em todo Estados Unidos. Anslinger defendia uma política radical de drogas e em 1961, a Convenção Única Sobre Drogas Narcóticas foi assinada e todo o mundo se comprometeu à “guerra as drogas”. Simultaneamente, ocorria, nos anos 60, o movimento hippie da contracultura, onde os jovens americanos rompiam com os valores da sociedade tradicional e havia o uso da maconha. Em todos os países se começou a ver na planta uma subversão ideológica, além de ser das camadas inferiores da sociedade.

No Brasil, os escravos em seus ritos tradicionais, chamados calundus, festas de batuques, mal vistas pelos brancos, também começam a fazer o uso da planta. Em 1830, foi criada uma lei municipal da câmara do Rio de Janeiro que estabeleceu a restrição ao uso do “pito do pango”. Além de ser proibida a venda e o uso da maconha, a conservação em casas públicas também seria motivo de multa e três dias de cadeia. Por isso, pode-se dizer que a legalização da planta também faz parte da luta contra o racismo no Brasil, já que a maior população escravizada e o primeiro lugar do mundo a criminalizar a conduta de fumar maconha foi o Rio de Janeiro.

Liberação para fins medicinais e alto custo

Em janeiro de 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou o uso do canabidiol para fins medicinais no Brasil e colocou parâmetros de importação especializada. Dessa forma, os próprios pacientes ou as famílias podem testar qual planta é melhor e também fazer óleos com a prescrição médica. Porém, existem desafios, já que o plantio não é permitido no Brasil e, por isso, tem a importação do produto, o que faz o preço nas indústrias farmacêuticas ser alto. Os custos da terapia medicinal da maconha são uma barreira no acesso de todos que sofrem com as enfermidades.

É por isso que Joyce Flávia recorreu a um jardineiro que faz a extração do óleo com CBD e que vende a preço acessível a famílias carentes. O irmão da professora, de 49 anos, sofre com epilepsia desde os três meses de idade. Durante o parto, o enfermo ficou sem oxigênio, o que afetou sua cognição e processo motor. Hoje, ele é classificado como portador de paralisia cerebral tipo 3 e por quarenta anos tomou remédios para controlar a doença, que tende a deixá-lo com excessos de raiva. 

Como consequência do uso ininterrupto de fármacos, cada vez mais fortes e em dosagens maiores, a epilepsia do irmão de Joyce começou a ser refratária. “Nenhum remédio estava funcionando, rivotril, medicamentos que você consegue no hospital e ainda assim não era suficiente para equilibrar o humor dele”, disse Joyce. Segundo ela, o homem tinha crises uma após a outra, que chegavam a duas horas de duração e hoje isso mudou.

Benefícios da planta

“Antes ele tinha crises epilépticas fortes toda semana e agora tem uma por mês e costuma ser muito rápida, não fica tão transtornado como antes. Inacreditável como melhorou a vida dele. Hoje ele sorri, sente muito menos dor. A melhora foi substancial, 100% praticamente”, disse Joyce Flávia sobre seu irmão. A família do homem cogitou até de acionar tratamento para que ele fosse internado, já que “era amedrontador ficar no mesmo lugar que ele”. Porém, para ela, “hoje ele voltou a ser quem sempre foi”.

Além disso, ele tinha problemas com alimentação e hoje come normalmente, “até brincamos sobre a larica e torcemos para a larica vir na hora do almoço, café da manhã e jantar para ele se alimentar bem”. Outra experiência com a maconha medicinal na família de Joyce foi com sua sogra, que descobriu um câncer. A planta ajudou a melhorar a qualidade de vida dela, antes de partir por conta da doença. 

Segundo a Sociedade Brasileira de Estudos da Dor (SBED), pelo menos 37% ou 60 milhões de brasileiros, relatam sentir dor crônica. Conforme pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Universidade de Queensland, na Austrália, cerca de um milhão de brasileiros sofrem de demência, sendo a maioria com Alzheimer. Já segundo dados do Center of Diseases Control and Prevention (CDC), cerca de dois milhões de pessoas no Brasil possuem autismo. Além de milhares de pessoas que sofrem com epilepsia e outras enfermidades que poderiam ser curadas com o uso da planta.

Apenas no cálculo das enfermidades citadas, já são mais de 60 milhões de pessoas que poderiam ser beneficiadas com o uso da cannabis. Pessoas que não tiveram resultados com outros tipos de terapia e seguem sofrendo com suas doenças. A cannabis possui diversas substâncias e cada uma tem uma função, união e combinação diferente de canabinoides. O efeito comitiva, por exemplo, é a sinergia entre todos os compostos químicos da Cannabis, quando o extrato completo da planta é utilizado, o que potencializa os efeitos terapêuticos.

Porém, ainda há preconceito em relação à planta pela classe médica. O sistema endocanabinóide é um sistema biológico existente no corpo humano, composto por endocanabinoides que se combinam com receptores e desempenham diversos papéis e que combinam com os fitocanabinoides da planta – por isso, a maconha não gera overdose, como alguns pensam. O sistema regula funções como a imunidade, apetite, sono e memória das pessoas e o canabinoide existe até mesmo no leite materno, para o desenvolvimento do bebê. Entretanto, não é um costume das faculdades estudarem sobre o potencial da planta para o organismo. Se fosse estudado, as combinações seriam feitas e testadas de forma natural. “É só achar a cepa certa, qual tem mais THC, CBD. Do mesmo jeito que uso chá, quero dormir vou fazer uma camomila com erva cidreira”, disse Joyce.

Joyce conseguiu convencer a sua mãe, de 70 anos de idade, sem o ensino fundamental completo e que sempre teve seus valores presos às exigências da sociedade, da eficácia da maconha, que ocorreu quando a mulher viu de perto a mudança de seu filho. “Foi assim que desconstruí esse monte de coisa horrorosa que fica na cabeça das pessoas. Abrir a mente dela, foi muito bom. Cada vez que ela aceita coisas que vão trazer benefício para ela é ótimo. Não tem essa de idade, condição social, estudo, é só uma questão de bom senso e estar aberto para ouvir”.

Além da história do irmão de Joyce, uma história que mostra como a maconha traz benefícios para a saúde das pessoas é a história que viralizou nas redes, “Curando Ivo”. Um empresário de Goiânia mostra, através de um vídeo, a melhora de seu pai com Alzheimer após o uso de óleo CBD.

Além de todos os benefícios medicinais da planta na vida de Joyce e de sua família, o uso recreativo, para ela, liberta a sua veia criativa. “A maconha me autoriza a entrar em comunhão comigo mesma, com o meu lado artístico, ajuda a diminuir minha pressão, ansiedade e depressão, e isso me faz bem, me expresso melhor, me controlo mais, só tem benefícios. É uma planta, não uma droga”.

A legalização faria com que todos começassem a fumar?

“Você tem cigarro, que qualquer um pode comprar na padaria e você não vê todo mundo fumando ete você vai ver um ‘trafica’ da Vila Mariana, Pinheiros, brancos e ricos sendo presos, não sofrem as mesmas consequências e conseguem se safar com facilidade da legislação”.  hoje temos uma cultura antitabagista forte. Álcool é a mesma coisa, inclusive com propagandas que sexualizam mulheres e rendem milhões para empresas”, segundo Joyce. Para a socióloga, com a descriminalização vem o imposto, taxa, legislação, o limite de compra e consumo, o que não se tem hoje, além da garantia de qualidade. “É muito mais fácil para um adolescente, por exemplo, comprar um corotinho ali no mercado e beber por 5 reais”, disse ela.

Luís Carlos Valois, em seu livro “Direito Penal da Guerra às Drogas”, mostra como a guerra às drogas foi o fator chave para o drástico aumento da população carcerária e como, na realidade, aumenta o crime. Para Joyce Flávia, os “donos de helicópteros”, que realmente fornecem as drogas, não são perseguidos, mas sim “os negros, periféricos, pobres.”

Para Joyce, a legalização coibiria o tráfico e legalizaria, além de tudo, a possibilidade de fazer renda com algo que é natural, com restrição, legislação, acompanhamento e políticas públicas, o que diminuiria a violência e perseguição policial em cima dos pretos e pobres. “Na hora que começar a cair a casa de filho de coronel e pessoas que estão no alto escalão, tenho certeza que as coisas vão mudar e começam a falar sobre o uso recreativo. Mas não acho que estarei viva quando isso acontecer”, disse ela.

Projeto de lei 399/2015

O projeto de lei 399, apresentado em 2015 pelo deputado Luciano Ducci simboliza o marco regulatório da Cannabis no Brasil. Não apenas para o uso medicinal, mas como commodity, já que registros da Europa na Idade Média mostram que a planta era utilizada para fabricar papel, tecido, corda e mais de 25 mil produtos podem ser feitos a partir do caule, semente ou fibra da planta. 

No projeto de lei, quem poderia cultivar a planta seriam os centros de pesquisas, empresas, associações de pacientes e farmácias do Sistema Único de Saúde (SUS), que permitiria a democratização do acesso a maconha medicinal. O maior desafio do projeto são os políticos que muitas vezes não possuem informação científica necessária sobre a importância da planta para a saúde. Em 2019, o Ministro da Cidadania do período, Osmar Terra, chegou a dizer que poderia acabar com a Anvisa caso o plantio da maconha fosse aprovado e que a agência estava enfrentando o governo.

O uso da maconha para fins medicinais nos Estados Unidos está presente em mais da metade dos estados do país. Já a legalização da venda e consumo da planta para o uso recreativo acontece na Califórnia, Colorado, Oregon, Massachusetts, Washington, Maine, Nevada, Distrito da Columbia, Idaho, Illinois, Kansas, Michigan, Vermont, Alasca e Maine. Segundo a Revista Fórum, prognósticos do governo estadual apontaram que o negócio pode produzir mais de 60 milhões de dólares em receitas fiscais durante os próximos dois anos, dinheiro que foi somado ao orçamento de educação do estado, segundo o senador Tick Segerblom, responsável pela medida.

A informação sobre o potencial terapêutico e a segurança do uso da maconha em diferentes condições, além da descriminalização, é uma questão de saúde pública. Por não ser uma planta legalizada, muitas pessoas recorrem ao “prensado”, com péssimas condições de embalagem e higiene e que sofre com a fermentação. Para Joyce, “o prensado só existe porque a maconha ainda é ilegal, além de ser elitizada”.

* O nome da entrevistada foi alterado para preservar a sua identidade.

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