Rio de Janeiro, 14 de março de 2018, 30 dias de intervenção federal. O clima de caos social ajudava a construir a aura de guerra civil. Nesse dia, um ato de resistência ocorreu, movido por mulheres negras e faveladas que desejavam mudar as estruturas com sua luta, que desejavam ser ouvidas e não mais caladas.
Porém, nesta mesma data, mais uma delas foi silenciada. Uma mulher que batalhou para conquistar seu lugar em meio ao patriarcalismo branco da política brasileira e se tornar uma porta-voz da comunidade. Neste dia, Marielle Franco, assassinada com quatro tiros na cabeça, tornou-se um símbolo da resistência.
A repercussão foi imediata: em todos os jornais brasileiros se relatou a morte da vereadora. Mesma história, diversas abordagens, variando conforme a ideologia do veículo e suas intenções em divulgar o ocorrido.
No meio disso tudo, uma família desmembrada. Uma filha órfã de mãe, uma mãe e um pai sem filha, uma irmã não mais caçula e uma mulher, que de esposa foi a viúva. A família de Marielle não teve nem tempo de absorver o ocorrido ou sofrer o luto e já de pronto foi acionada para falar sobre o assunto e defender a sua memória.
Em um depoimento ao El País, Marinete Franco, mãe da política, contou que recebeu a notícia por um repórter ao telefone e que confirmou ao ver o plantão de notícias que interrompeu o jogo do Flamengo assistido por seu marido. Relatou também a angústia em não receber respostas ou detalhes, já que de início o caso era mantido em sigilo absoluto. Essa inquietude não acabou mesmo com o decreto do mandato de prisão de Ronnie Lessa e Élcio de Quiroz, em março de 2019, sendo apenas apaziguado pelo apoio de mães da comunidade que igualmente perderam seus filhos para a violência.
Quando perguntada sobre como lidou com tamanha repercussão e qual era o seu papel em tudo isso, Marinete respondeu: “Não assumo papel nenhum, sempre serei uma mãe sofrida, que viu sua filha arrancada, morta com 38 anos. Mas vou defender seu legado e vou para a rua, porque preciso que esse crime seja solucionado”.
Assim como a mãe, Anielle Franco assumiu um papel de defesa à lembrança da irmã, encarando de frente as fake news lançadas sem a menor empatia e que englobavam não somente a figura da vereadora, mas também a integridade da família. Para isso, uniu cartas escritas pelos pais, pela filha e por ela mesma, em um livro para eternizá-las.
“Meus pais passaram três ou quatro meses depois do assassinato da Marielle escrevendo muito e muitas cartas até rasgaram, porque eles choravam muito em cima delas. Algumas eu nem consegui digitalizar. Peguei as que estavam mais legíveis e comecei a guardá-las, junto com algumas da Luyara [filha de Marielle]. Pensei que tínhamos que eternizar isso, mesmo que talvez seja muito pesado e triste”, conta Anielle Franco em entrevista ao El País.
Esse peso relatado por Anielle caiu de maneira esmagadora sobre Mônica Ribeiro, fazendo com que a viúva perdesse onze quilos e definhasse pelo desgaste que era aparecer forte diante das câmeras, enquanto em seu íntimo se sentia devastada, como contou em entrevista à revista Trip. Em outro relato cedido à revista Fórum, falou ainda de como sofreu duplamente pela falta de informação e pela mídia perguntar-lhe coisas que não podia responder exatamente por este fato. Mais à frente, nessa mesma entrevista, reforçou a gravidade do caso envolvendo sua esposa, afirmando que “as notícias relacionadas à execução de uma vereadora democraticamente eleita, em exercício de seu mandato, sejam elas quais forem, são gravíssimas. Porque a situação é gravíssima.”
Ao observar todos os relatos e os conectar com o contexto, pode-se observar que o maior estigma compartilhado é a falta de respostas e de um processo de luto apropriado. Esse processo, segundo o mestre em sociologia pela Faculdade Livre de Bruxelas e autor de um artigo sobre a injúria como aniquilamento político, Edimilson Alves de Medeiros, é extremamente necessário para que a família consiga achar um fim para aquela história. A falta de um desfecho “é uma ferida que fica em aberto eternamente. Não que ela feche, ela não cicatriza, mas cria uma casca e você vai sentir, mas ela não sangra.”, afirmou o estudioso.
Ele ressalta a maneira que esse momento de sofrer foi roubado da família, se referindo à necessidade que os familiares tiveram de defender o patrimônio de Marielle a todo momento, para que não fosse manchado pela desinformação caluniosa. “Então o processo de luto não foi dificultado, na verdade ele nunca existiu, esse processo foi também executado, foi roubado, eles não tiveram o processo de luto. Até hoje não têm, pois não puderam chorar devidamente por sua morte.”, complementa Edimilson.
Abordando outro lado da situação, pode-se observar um desdobramento positivo no sentido da força que o ocorrido afere aos movimentos que visam modificar a estrutura vigente. A execução de Marielle escancarou, para quem quisesse ou não ver, as assimetrias e preconceitos incrustrados no âmago do país, motivando ainda mais a busca por igualdade, por mudar a posição de alvo em que meninas como ela se veem e fazer com que passem a ocupar cargos importantes como o dela, em segurança.
Ademais, os novos prosseguimentos do caso, como a citação do nome do presidente Jair Bolsonaro, não podem tirar o nome da vítima de evidência, pois a resolução deste ocorrido pode ser um primeiro passo para a tornar a justiça realmente justa. Como disse Bianca Santana em sei livro “Quando me descobri negra, “no país onde justiça tem cor, preto bandido não merece julgamento. Só caixão ou cadeia. E mesmo que faça tudo direito, tem sempre o risco de não voltar para casa. Resistência seguida de morte”.