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Culture

Reinvenção Pela Luta: Transformações Do Rap Nacional Nos Últimos 20 Anos

This article is written by a student writer from the Her Campus at Casper Libero chapter.

Você conecta os fones de ouvido na entrada do celular, ou aperta o on do bluetooth. Abre o seu aplicativo de música preferido em busca de uma playlist pronta para ouvir enquanto se concentra em uma tarefa, ou se desliga do entorno por um instante. Dessa vez, decide ir pelo rhythm and poetry: digita “rap nacional” no buscador, e a “Gigantes do Rap Nacional” aparece em destaque. A expectativa de encontrar nomes como Racionais, Sabotage e Gabriel O Pensador é grande, e se cumpre. Mas hoje, pensar em gigantes do rap no país já engloba também novos nomes, novas tendências e beats que são fruto de uma série de transformações que a cena do rap nacional passou ao longo das últimas décadas. Novos artistas fazem história nas lutas, nos discursos, na maneira de se fazer o rap – e também nas playlists.

Para trazer uma visão sobre o rap nacional na atualidade e alguns paralelos com o rap de duas décadas atrás, a Her Campus entrevistou Pedro Fávero (@opedrofavero), diretor e produtor dos documentários O Rap Pelo Rap, de 2015, e O Rap Pelo Rap 2, de 2019. Para os projetos, Pedro, que é formado em Rádio e TV pela Unesp, realizou várias entrevistas com uma série de rappers e produtores que formam a trajetória do rap no país. Djonga, Mc Soffia, Drik Barbosa, Mano Brown, Haikaiss, Criolo, Brisa Flow, dentre outros artistas compartilham nos longas suas visões e experiências sobre o rap em diferentes períodos, além de evidenciarem a importância de seu poder de transformação nas vidas próprias e na das pessoas que os ouvem. 

A atemporalidade dos grandes nomes

O impacto do trabalho de artistas como os Racionais na cena do rap nacional não fica restrito apenas ao período em que esses rappers tiveram seu auge. Pelo contrário: Mano Brown, Ice Blue, Edy Rock e KL Jay lançaram o primeiro EP dos Racionais MC’s em 1990,
mas até hoje são vistos como uma espécie de manual para vários artistas. O Rap é Compromisso, primeiro álbum da curta, mas memorável carreira de Sabotage na cena do rap nacional, uniu aspectos técnicos e líricos de forma nunca vista antes, e trouxe um
parâmetro de inspiração para artistas que surgiram depois. Grandes nomes do rap que se popularizou nos anos 2000 se tornaram referências atemporais para o meio.

Hoje, o que muda não é o respeito ou admiração com esses artistas, mas a forma com que o legado deles é utilizado e refletido no contexto atual. Pedro Fávero, ao conhecer novas figuras do rap como documentarista e ouvinte das músicas, comenta:

“Existem os caras que citam Racionais em pelo menos uma música de todos os álbuns, que referenciam mesmo, que eu sei que sabem todas as letras e tudo da história. Djonga, Emicida, os que sempre estão citando. Trazem os Racionais para um público mais jovem.
E, claro, tem os caras que sabem quem são Racionais, mas a própria mensagem deles você vê que é diferente, os trappers, por exemplo. Ele é muito mais vazio do discurso de racismo, da fala sobre o sistema. Às vezes parece idêntico ao sistema, porque estão
falando de jóias, de festa, parece uma publicidade. Mas se você parar pra pensar, o cara é da periferia, ou é periférico de alguma forma e tá falando isso, e isso já é uma revolução que os Racionais pregavam. Que é o cara poder fazer o que quiser da vida dele.”

Novas Influências

Na cena do rap nacional hoje, há uma série de novas tendências, que incluem desde mudanças nas letras e nos temas abordados por alguns rappers, até na fusão das batidas características do hip-hop com outros gêneros musicais, como o funk, o samba e o pagode.
E isso se faz de formas plurais: artistas como Emicida, com teor político nos discursos, mesclam o ritmo das músicas com raízes do samba, da MPB, e com sucesso. Ao mesmo tempo, o rap nacional hoje conta com artistas como BIN, que viralizou nas redes sociais e
emplacou vários hits recentemente como Marília Mendonça, Saturno e Pedaço de Mim com um estilo baseado no pagode, com uma certa melancolia romântica característica nas letras, e também referências ao trap norte-americano.

No caso de movimentos como o do trap e do rap acústico, há um maior distanciamento do teor crítico que moldou o rap no país anos atrás, muito também porque a realidade de muitos MC’s também já não é a mesma. Entretanto, Pedro Fávero enxerga essa maior
variedade de discursos como uma forma de levar o gênero além de sua própria bolha: “Eu acho que ele apresenta o rap a muito público novo. Toda plataforma que leva o rap, o gênero rap a outras pessoas, é benéfico. Porque se você se interessar por um Poesia Acústica, você realmente quiser entender ‘por que chama poesia acústica? Mas eles estão cantando, então é uma poesia cantada, então na verdade eles são rappers, então vou ouvir o CD do Djonga aqui.”

E, por mais que o estilo ainda gere um impacto, por remeter a um rap semelhante à suas origens, esse processo gera o conhecimento do discurso desses artistas: “Vai ter um contato com um cara da periferia, negro, que quis trazer essa visão para uma pessoa que talvez não seja dessa realidade.”

Mulheres no Rap Nacional

Do primeiro para o segundo documentário, Pedro Fávero teve oportunidade de tornar a produção mais representativa, o que não foi possível no primeiro projeto: “No Rap Pelo Rap 2 teve um diferencial muito legal, porque no TCC [Rap Pelo Rap 1] eu entrevistei quem
eu conseguia, não consegui escolher quantas pessoas iam estar, ou quem ia estar. No segundo, como eu conhecia mais as pessoas do meio, eu fui conseguindo colocar mais minas, por exemplo, que é algo que não tem no primeiro filme.”

Por mais que essa mudança na presença feminina tenha se dado também por razões mais técnicas no documentário, ela configura um cenário de transformação que ocorre no rap nacional, com um protagonismo feminino que não era visto há vinte anos.

Gradativamente, mais mulheres conquistam os holofotes, abre-se espaço para seus discursos antes pouco ouvidos e sua voz é amplificada pelo próprio apoio e empoderamento das outras mulheres do movimento.

Entretanto, o trabalho de mulheres como Bivolt, Brisa Flow, Azzy, Gabz, Flora Matos e várias outras que se destacam em diferentes modelos de rap hoje permanece permeado por machismo. A luta hoje envolve conquistar o respeito não só dentro da cena do rap, mas
dos próprios ouvintes. Em seu segundo filme, Pedro retratou muitas das entrevistadas com uma intensa expectativa de unificar o rap, de serem retratadas simplesmente como artistas, não como mulheres. Ele ressalta: “Não é ‘Ah, vou ouvir um rap de mina’, é ‘vou
ouvir um rap’, independente do gênero.”

O Rap na mídia

De início, o rap se construiu no Brasil mesmo sem aparecer na TV ou nas rádios. O gênero se fortaleceu e propagou o conteúdo crítico que se propõe a fazer de um modo único,praticamente criando as próprias mídias. Em 2007, o grupo Racionais MC’s repercutiu por todo o Brasil com o show realizado durante a Virada Cultural Paulistana, pois naquela noite dezenas de fãs foram detidos pela polícia militar após suposta incitação de violência pelo grupo e pelo público durante a música ‘Eu Sou 157’. Hoje, o Racionais se destacam de outras maneiras perante a mídia e aos intelectuais do país desde sua aparição nas questões do ENEM de 2017 até a entrada de Sobrevivendo no Inferno como leitura obrigatória do vestibular da Unicamp.

Atualmente, a exploração de novos ritmos e a maior abertura de discussões políticas na esfera pública, trouxe os olhos do cenário musical e da mídia brasileira para uma pluralidade de artistas do rap nacional. “Acredito que pela sociedade estar aceitando mais discutir alguns temas, talvez também esteja aceitando mais raps mais pesados. A frase ‘fogo nos racistas’, por exemplo, nos anos 90 significa uma coisa, nos anos 2000 vai significar outra, nos anos 10, anos 20, é outra”, diz Pedro.

Os espaços que os artistas do rap ocupam também mudaram por conta da possibilidade de uma divulgação maior e mais rápida de seus trabalhos, que não ficam restritos à sua própria região. Com o advento de plataformas de streaming e de mídias como o Youtube, os
rappers são ouvidos em uma grande diversidade de contextos, como relatou o diretor: “Os rappers que estão mais bombados no Brasil, Djonga, Criolo, o próprio Emicida, Tássia Reis, eles continuam tocando nas quebradas, falando da quebrada e continuam nos espaços muito de rico mesmo. O Mano Brown, por exemplo, eu já vi ele num show na quebrada de graça, mas eu entrevistei ele na sede do Spotify Brasil, no lançamento de uma música nova dele.”

Em conjunto, sons como o rap acústico, o trap e o rap romântico também são parte desse movimento, com músicas consumidas por várias classes sociais. E isso ocorre, em grande parte, pois seus discursos são mais aceitos em grandes mídias.

Apesar dessa tendência visível, o produtor ressalta a necessidade de ponderar se esse cenário de aceitação se aplica no rap como um todo, e conta que “é difícil falar que o rap está sendo cada vez mais aceito numa sociedade em que tem muita coisa conservadora
acontecendo. Então será que está sendo mais aceito, ou que o preconceito está aumentando?”.

Mas, de fato, os MC’s não baseiam seu trabalho nessas condições, e o teor de afronta de suas mensagens persiste ao tempo independente do comportamento dos meios de comunicação: “Os rappers estão fazendo o que eles querem, e o que incentiva eles é falar coisas que eles não estão vendo na mídia.”

A persistência da luta

Falar que o rap hoje se afastou de suas origens políticas é uma generalização equivocada, pois o que motiva a produção de suas músicas desde os primeiros movimentos do hip-hop continuam sendo as pautas sociais, o movimento antirracista e as denúncias e críticas sociais.

Artistas como Rico Dalasam, o primeiro rapper assumidamente gay a fazer um grande sucesso no rap nacional principalmente após o hit Aceite-C (2014), transformam o rap como música e como movimento, abrindo caminhos para uma luta por liberdade dentro e fora desse ramo. Pedro Fávero entrevistou Dalasam para o segundo documentário, e vê sua participação com admiração. “É muito louco, porque ele é negro, da periferia, faz rap e dentro do próprio rap ele é a contracultura”, comentou.

De um modo geral, o produtor também evidenciou um cenário de uma luta política persistente, que se tornou ao longo dos anos ainda mais falada entre os rappers. “O tom do filme, do 1 pro 2, muda. Mesmo sem eu mudar tanto as perguntas, os caras já tem um tom muito mais político, fala-se muito mais de racismo, de machismo, de feminismo, porque são questões que estão muito ligadas ao rap e que são importantes de serem discutidas.”

Logo, desde as primeiras manifestações de musicalidade e poesia que o rap levantou na cena musical brasileira, até a ascensão de mais artistas nas últimas décadas e a grande proporção que o rap nacional possui hoje em dia, ele se transformou em aspectos diversos, mas sem deixar de referenciar o que levou esse gênero até seu patamar atual. O rap é, ainda, o resgate de pessoas e lutas, é um incômodo midiático já por sua origem que promete resistir por muitos anos. E, independente de seu formato, Pedro Fávero destaca: “Eu espero que o rap sempre incomode as pessoas.”

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O artigo acima foi editado por Vitória Antunes.

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Journalist who relates to more Taylor Swift songs than she should and have more Star Wars posters than her bedroom walls can fit.