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This article is written by a student writer from the Her Campus at Casper Libero chapter.

Em uma mansão situada na Inglaterra vitoriana do século XIX, galinhas, porcos, patos e cabras passeiam livremente. Godwin Baxter, anatomista de rosto sombrio e marcado por cicatrizes, tem uma filha adotiva com a inocência de uma criança e a beleza de jovem.

Inspirado no romance do escocês Alasdair Gray, originalmente publicado em 1992, o diretor Yorgos Lanthimos mergulha em uma narrativa surreal e provocativa, a qual expõe as complexidades do amadurecimento feminino em uma sociedade patriarcal que exerce, constantemente, formas de dominação e poder sobre as mulheres

PRIMEIRA FASE: DESCOBERTA

A trama acompanha uma mulher grávida que, após cometer suicídio, é encontrada morta por Godwin Baxter (Willen Dafoe). O cirurgião e cientista decide, portanto, resgatar o seu corpo e trazê-la de volta à vida por meio de um experimento inusitado: ele realiza o transplante do cérebro do recém nascido para o corpo da mãe, e a reanima. E assim surge Bella Baxter (Emma Stone), que é mãe, filha, menina e mulher ao mesmo tempo.

Bella volta à vida com algumas limitações. Por ter o cérebro de um bebê, precisa desenvolver novamente as suas capacidades motoras e cognitivas, caracterizadas por movimentos desengonçados e descoordenados e falas sem a utilização de verbos. A narrativa, então, apresenta os processos de socialização de uma criança em um corpo adulto. É curioso – e cômico – ver uma mulher aprendendo a comer, andar, falar e, ao mesmo tempo, tendo que lidar com as regras da sociedade. 

Ao carregar consigo o cérebro de seu filho, Bella lida com a fusão de duas identidades distintas que se unem em uma única entidade física. Essa junção, além de desafiar as noções convencionais de individualidade, faz com que a jovem viva um conflito interior entre suas próprias vontades e as expectativas impostas sobre ela pelas pessoas ao seu redor.

Godwin, portanto, decide chamar um de seus alunos, Max McCandles (Rany Youssef) – estudante fascinado pelas aulas de anatomia –, para que ele seja o seu assistente e anote o progresso motor e mental da jovem. Conforme Bella evolui, Max se deslumbra pela mulher. 

Revertendo a história de Frankenstein, dessa vez a “pobre criatura” é fisicamente perfeita, mas seu criador apresenta deformações no rosto. O personagem de Godwin possui uma construção interessante e solitária, o que o torna tão criatura quanto Bella. No início, o cientista mantém a jovem em uma mansão, controlando e proibindo-a de conhecer o mundo.

No entanto, com o desenrolar da narrativa, God – como é chamado por Bella, explorando a ideia de criatura e criador –,  demonstra um sentimento de amor paterno pela jovem, e respeita a sua decisão de conhecer o mundo, mesmo que isso custe a sua felicidade. God dá a Bella a oportunidade de sentir todas as sensações que o mesmo foi privado – pois foi torturado por seu próprio pai, em nome da ciência. 

A primeira etapa do filme é retratada em preto e branco e recria um retrato da sociedade patriarcal, na qual a mulher é propriedade do pai até casar-se e, eventualmente, tornar-se posse de seu marido. Bella se vê confinada na mansão de Godwin, podendo sair apenas sob supervisão e sem que haja o contato com outras pessoas. Porém, aos poucos, o cientista vai de um pai superprotetor a alguém que cede liberdade a sua filha. E Bella não vê a hora de se emancipar. 

SEGUNDA FASE: LIBERTAÇÃO

Buscando proteger e restringir a experiência de Bella, Godwin e seu assistente procuram a ajuda de um profissional para escrever o contrato matrimonial que mantenha a jovem presa a eles. Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), o advogado charlatão, é chamado até a mansão e, ao conhecer Bella, decide persuadi-la a fugir com ele em uma aventura. A mulher, apaixonada pela ideia de descobrir o mundo e cansada de viver às sombras de seu criador, aceita a proposta.  

O espectador, portanto, é convidado a acompanhá-la em uma jornada rumo à descoberta de sentimentos de um mundo com valores e regras criados de homens para homens. Quando Bella ganha o mundo, as telas explodem em cores.

No primeiro destino – Lisboa – o lado sexual de Bella é aflorado, sendo a forma como a mulher desenvolve a sua individualidade, experimentando todas as sensações sem nenhuma amarra. Ao sair de casa, a jovem adquire uma grande capacidade de aprendizado. Ela não segue as etiquetas sociais e não consegue se conter ao escutar pela primeira vez uma banda tocar ao vivo. Bella pula, gira e mexe os braços, enquanto seu acompanhante não vê a cena com o mesmo encantamento, e corre para impedi-la de destoar dos demais casais.

Sua postura indiferente faz Duncan odiá-la e amá-la, pois, apesar da tentativa em manipulá-la, a jovem não entende ao certo o significado das emoções, e nem mesmo os prazeres físicos são capazes de mantê-la presa. O advogado cafajeste a leva para explorar o mundo mas, para o desespero do homem, ela não se importa de fazer isso sem ele. 

Não há, na realidade de Bella, a submissão a um homem, ou qualquer freio que a impeça de saber mais sobre a vida. Duncan, ao perceber que a jovem não é tão ingênua quanto imaginava, acaba se apaixonando por ela. E, quanto mais ele a deseja, mais tenta – em vão – contê-la. O personagem, nesse momento, vai de aproveitador a sofredor com uma agilidade hilária. 

A segunda parada é a Grécia. Diferente do amontoado de cores que deixara Bella fascinada em Portugal, em Atenas a protagonista entra em contato pela primeira vez com a pobreza extrema. Esse feito é a verdadeira perda de sua inocência. A partir de então, Bella decide viver como prostituta em Paris e conceber um mundo livre de julgamentos. 

A AUTONOMIA FEMININA

A cada capítulo é possível observar Bella mais articulada, mais segura de si, mesmo quando as circunstâncias parecem se mover contra ela. O arco do filme, portanto, não é analisar o sofrimento de uma criatura deslocada no mundo, e sim a formação de uma mulher que busca o autoconhecimento e resiste às dominações masculinas. 

Emma Stone varia entre atuações animalescas e inocentes ao compartilhar descobertas e opiniões com os outros, transitando por todas as nuances de maneira genial, o que lhe rendeu o Oscar de 2024 de Melhor Atriz. Stone representou impecavelmente o arco do amadurecimento e a autodescoberta de uma protagonista que ocupa o lugar que quer, e não o que a sociedade determina. 

Bella não é apenas um experimento, e sim uma jovem curiosa que busca construir o seu próprio caminho. A jovem é a exceção. Uma anomalia que não pede permissão, que discorda e ignora os moldes nos quais tentam encaixá-la. É como se o público também precisasse reaprender os significados da vida juntamente com ela. Nesse sentido, o filme utiliza o sexo como referência de autonomia – o contrário da moralidade social atribuída às mulheres.

A sensação é de que Stone representou vários papéis ao mesmo tempo. Primeiro, uma criança trancada dentro de casa aprendendo as funções básicas de um ser humano. Em seguida, uma adolescente questionadora que sonha em desbravar o mundo. E, por fim, uma mulher independente, forte e corajosa livre das imposições sociais. 

Todos os personagens masculinos parecem desejar aprisionar Bella de alguma maneira, mas ela se desvencilha de todos. O ex-marido da jovem, General Alfie Blessington (Christopher Abbott), aparece no final da trama e insiste que Victoria – a mulher que se suicidou – voltasse à vida de subordinação.  Quanto mais liberta dos pudores da sociedade e mais consciente desses atos, menos os personagens – antes fascinados por ela – a aceitam, e mais desejam controlá-la. 

Em Pobres Criaturas, o sistema de opressão parece ser a moralidade, que é repleta de contradições. E Bella descobre cada uma delas: a polidez social, os bons costumes e a vergonha do sexo. 

FIGURINO, ARTE E SURREALISMO

Pobres Criaturas se dest aca pelo ar teatral e as roupas exageradas. A falta de espaço de narrativas inusitadas em Hollywood, somadas ao compromisso enquanto obra, faz com que ninguém saia indiferente após assisti-la. 

A forma estética de contar a história utilizando o preto e branco e uma câmera com lente olho de peixe, bem como as cores saturadas, tornam as imagens palpáveis. Não é à toa que o longa recebeu outras três estatuetas no Oscar de 2024: Melhor Figurino, Melhor Direção de Arte e Melhor Maquiagem e Penteados. 

Vale destacar a interpretação de Mark Ruffalo, que concorreu ao Oscar de 2024 na indicação de Melhor Ator Coadjuvante devido a brilhante incorporação de um cafajeste com um ego aparentemente inabalável. 

A escolha do jogo de câmeras e os contrastes no esquema de cores contribuíram para formar um ar que captura o olhar do público. Além disso, a construção da obra tem um viés surrealista – apresentado por meio das viagens –, mas, ao mesmo tempo, se encaixa perfeitamente no que poderia ser considerado o sonho de alguém. A artificialidade está presente em tudo, como uma tentativa de reproduzir a perfeição que qualquer criança espera de uma viagem para um lugar novo. 

Apesar de ser ambientado na Era Vitoriana, o filme deixa o público sem saber se está no passado ou no futuro. Pobres Criaturas possui um roteiro bem costurado, diálogos divertidos e questões sociais de extrema importância que permeiam entre códigos morais e ética na vida em sociedade. Para os olhos e os ouvidos, a obra é um espetáculo. 

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O artigo acima foi editado por Ana Luiza Sanfilippo

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Camila Iannicelli

Casper Libero '25

Estudante de jornalismo. Tentando sair do óbvio. Cultura, música, entretenimento, esportes. E-mail para contato: camilaiannicelli13@gmail.com