Her Campus Logo Her Campus Logo
Culture > News

Crise social-humanitária no Haiti: a expansão das gangues armadas

The opinions expressed in this article are the writer’s own and do not reflect the views of Her Campus.
This article is written by a student writer from the Her Campus at Casper Libero chapter.

Colônia espanhola e francesa até o século XIX, o Haiti foi primeiro país a abolir a escravidão no mundo. Os trabalhadores lideraram uma luta contra as potências coloniais na Revolução Haitiana, que teve como consequência o fim do regime escravista francês e a independência do país, em 1804.

Logo em seguida, o Haiti foi submetido a retaliações que foram desde o seu não reconhecimento internacional como nação independente até embargos econômicos e indenizações aos ex-donos de escravos franceses. O pagamento das dívidas relacionadas ao reconhecimento do país como república independente ocorreu somente em 1947, o que provocou danos à economia local. 

O Haiti também enfrentou ondas sucessivas de invasões após a obtenção de sua independência. Uma delas inclui a ocupação estadunidense de 1915 a 1934, uma ditadura de 1957 a 1986 – a qual impediu que o país saísse do sistema neocolonial imposto pelos militares dos Estados Unidos -, golpes com o apoio do Ocidente e uma intervenção militar da ONU que durou 13 anos e teve seu fim em 2017. Regimes marcados pela repressão política e corrupção contribuíram para o legado de pobreza, desigualdade e violações dos direitos humanos no país.

nova liderança

O vácuo político deixado pelo assassinato do presidente Jovenel Moise, em julho de 2021, contribuiu para que o Haiti fosse dominado por gangues armadas e para que a instabilidade política se intensificasse no país. 

O governo de Moise foi marcado pelo autoritarismo e por práticas anti-democráticas. Em cinco anos, ele destruiu diversas instituições estatais, dentre elas o poder legislativo e judiciário. 

O país não tem um parlamento funcionando, pois Moise se recusou a organizar eleições legislativas em 2020, ano de vencimento dos mandatos dos senadores. No Haiti, o presidente deve renovar os mandatos dos juízes que conduzem os inquéritos, mas Moise não o fez. Portanto, dois terços deles têm nomeações que expiram e, apesar de serem remunerados, não podem realizar diligências oficiais. 

Em 2022, muitos protestos tomaram conta do Haiti, sendo a continuação de um ciclo de resistência que teve início em 2016, em resposta à crise social desenvolvida pelos golpes de Estado de 1991 e 2004. As estruturas de dominação e exploração empobreceram o povo haitiano, em um cenário no qual a maioria da população não tem acesso à educação, moradia, assistência médica e água potável

Mulheres em protesto contra os sequestros, em Porto Príncipe.

Além disso, o governo do país, atualmente liderado por Ariel Henry, aumentou o preço dos combustíveis, aprofundando o movimento de revolta. Após Henry anunciar a retirada dos subsídios aos combustíveis em meio a manifestações de oposição, o terminal de Varreux foi ocupado. Ele é responsável por armazenar grande parte do combustível utilizado no Haiti e, ao ser bloqueado, afetou o fornecimento de energia no país.

zonas vermelhas

Conforme a coordenadora de assuntos humanitários da ONU no Haiti, Ulrika Richardson, cerca de 80% da cidade está sob controle das gangues. O primeiro-ministro haitiano alegou que existem 162 grupos armados com 3 mil “soldados” em todo o país. Os atos de violência cometidos pelas gangues em disputas pelo controle de territórios e rotas para o escoamento de produtos no país têm aumentado expressivamente, principalmente na capital, Porto Príncipe. 

Mulher senta-se ao lado do corpo de seu filho morto por membros de gangue após tomada de controle do bairro, em agosto de 2023.

As gangues controlam áreas estratégicas de Porto Príncipe, conhecidas como “zonas vermelhas” ou “zonas sem lei”. Em algumas dessas regiões, não há a presença de governo, escolas ou serviços de saúde. O controle das áreas costeiras permite o recebimento de armas via mar. O controle também é feito a partir das duas estradas que ligam a capital à República Dominicana, ao leste e à península sul do Haiti. 

A crise de segurança apenas intensificou esses problemas. Muitos juízes deixaram de frequentar seus escritórios por estarem em zonas vermelhas, uma vez que não há proteção e correm o risco de sequestro.  O representante da Associação Nacional de Funcionários Jurídicos do Haiti alegou que os ladrões invadem os tribunais penais de Porto Príncipe para roubar arquivos de casos. Cerca de 150 grupos criminosos operam em Porto Príncipe, muitos deles sob duas das principais alianças criminosas, a federação G-Pèp e a aliança G9.

Além das questões citadas, a vulnerabilidade inclui desnutrição, escassez de alimentos, acesso limitado aos serviços de saúde, instalações sanitárias e de higiene precárias e outros fatores, os quais contribuíram para o ressurgimento da cólera. A ONU alertou que os sequestros dispararam para mais de 1200 no ano passado: as gangues dependem deles para financiar suas operações.

A Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos do Haiti (RNDDH) relatou que, além dos ataques armados e dos massacres, as gangues organizam estupros coletivos de mulheres e meninas como tática de intimidação e controle. Entre os dias mais sangrentos, destaca-se a noite de 29 para 30 de novembro, na qual 72 mulheres foram mortas e 29 meninas foram estupradas em Sous Matela. Centenas de casas foram incendiadas e milhares de crianças estão sendo vítimas de fogo cruzado nos confrontos. 

A RNDDH também acusou a coligação política no poder de proteger os criminosos e dar carta branca às gangues para atacar a população, pois os grupos atuam praticamente sem restrições. 

Segundo a ONU, mais da metade da população local – cerca de 5 milhões de haitianos – estarão em níveis graves de insegurança alimentar até o final do ano. Entre o dia 1º de janeiro e 9 de setembro deste ano, foram registrados três mil homicídios. 

Além disso, mais de 1,5 mil pessoas foram vítimas de sequestro e quase 200 mil estão deslocadas internamente por serem obrigadas a saírem de suas casas. Dessas, cerca de 70 mil se encontram em assentamentos espontâneos e abrigos coletivos inadequados e precários, sem contar nas mais de 30 mil que dormem ao ar livre, de acordo com a Matriz de Rastreamento de Deslocamentos da Agência da ONU para as Migrações (OIM). 

Para fugir da violência das gangues, pessoas se abrigam em ginásio, em setembro de 2023.

Sem confiança no processo democrático, à medida que a situação piora, os haitianos fogem para outros países, arriscando suas vidas em busca de alguma segurança. Além disso, mais de 100 mil haitianos foram devolvidos à força de países vizinhos neste ano, a maioria sem identificação adequada, o que prejudica a sua reintegração. Nos Estados Unidos, o principal destino é a Flórida, porém, em 2022, a administração do presidente americano Joe Biden interceptou milhares de pessoas e as enviou de volta ao Haiti. 

O país também enfrenta dificuldades relacionadas a desastres naturais. Inundações foram causadas por chuvas torrenciais e afetaram quase 50 mil pessoas, forçando o deslocamento de outras 13 mil. 

 Chuvas intensas causam inundações e intensificam os casos de cólera no Haiti.

Ademais, o país nunca se recuperou das consequências do terremoto de 2010, que deixou cerca de 200 mil mortos e causou prejuízos equivalentes a 120% do PIB daquele ano. Por fim, o terremoto de seis de junho, de 4.9 graus na escala Richter, ocorreu no sul do país e agravou ainda mais a questão humanitária.

missão internacional

Em 2022, Ariel Henry solicitou ajuda da ONU e da comunidade internacional para conter as gangues que ameaçavam a segurança da população haitiana, logo após ter um dos principais terminais de combustível bloqueado em Porto Príncipe.

Após meses de negociação e desentendimento entre os países membros, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou, em outubro, a criação de uma força internacional para o Haiti, sendo uma resposta formal ao pedido do atual presidente do país. 

A ONU, portanto, diante de um cenário de colapso de segurança e do aprofundamento da crise humanitária e institucional, pediu aos governos que considerem a necessidade de uma mobilização de forças armadas especializada para ajudar o país. 

Com duração de um ano e liderada pelo Quênia, a proposta foi aprovada com 13 votos a favor e duas abstenções, e inclui a garantia de segurança e o funcionamento de serviços básicos, como escolas, hospitais e aeroportos. A missão também terá como objetivo criar condições para realizar eleições, proteger os grupos vulneráveis e prevenir a violência sexual e de gênero.

O Quênia se prontificou em enviar mil policiais e as Bahamas 150. Os países da Jamaica e Antígua e Barbuda também desejam cooperar. A missão será financiada com contribuições voluntárias, das quais os Estados Unidos prometeram até um bilhão de reais. 

——

O artigo abaixo editado por Maria Cecília Dallal.

Gostou desse tipo de conteúdo? Confira Her Campus Cásper Líbero para mais!

Camila Iannicelli

Casper Libero '25

Estudante de jornalismo. Tentando sair do óbvio. Cultura, música, entretenimento, esportes. E-mail para contato: camilaiannicelli13@gmail.com