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Culture

60 Anos Da Ditadura: Relembrar É Evitar Que A História Se Repita

This article is written by a student writer from the Her Campus at Casper Libero chapter.

Há exatos 60 anos, no dia 31 de março de 1964, começava aquele que seria um dos períodos mais sombrios da história do Brasil. Crimes políticos, mortes e torturas perduraram por 21 anos e fizeram com que o regime militar brasileiro violasse brutalmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos. 

Somente com a disseminação do conhecimento e da informação, será possível impedir que essa sangrenta passagem da história brasileira se repita. Assim, revisitar esse triste período e evidenciar as atrocidades cometidas é medida que se impõe.

Contexto pré-ditatorial

Alguns acontecimentos foram peças fundamentais para a eclosão do golpe militar. O curto mandato de Jânio Quadros, seguido pela posse de João Goulart (Jango), trouxe tensões políticas devido às diferentes propostas de governo. Jango pretendia realizar reformas de base, fato esse que lhe atraiu rejeição, já que afrontava os interesses das elites brasileiras. 

No contexto internacional, a Guerra Fria ainda estava acontecendo e, com ela, pairava o temor por um suposto “fantasma do comunismo”. Assim, os Estados Unidos passaram a intervir diretamente, apoiando regimes militares na América Latina – incluindo a brasileira. O nascimento do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), em 1963, bem como o apoio de figuras influentes como o jornalista e político Carlos Lacerda, contribuíram para o clima de instabilidade.

Eventos como o Comício Central, em março de 64, seguido pela “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, acentuaram a polarização no Brasil. No dia que antecedeu a tomada de poder pelos militares, João Goulart discursou em defesa das reformas de base, estreitando as tensões e culminando no golpe.

Os principais desdobramentos da ditadura

O dia 31 de março foi marcado por uma rebelião militar em Minas Gerais, liderada pelo general Olímpio Mourão Filho, que marchou com suas tropas até o Rio de Janeiro para derrubar Jango do poder. Com o golpe instalado, pouco mais de uma semana depois, no dia 9 de abril, o primeiro Ato Institucional é baixado, concretizando a ditadura e cassando mais de 40 mandatos.

A ditadura perdurou até o ano de 1985. Durante os 21 anos do regime autoritário militar, muitos crimes graves aconteceram – que fizeram com que a ditadura fosse vista com maus olhos até hoje – incluindo prisões ilegais, desaparecimentos políticos, torturas e mortes. 

Espionagem, coleta de informações e repressão

No primeiro ano de ditadura, o Brasil viu a criação do Serviço Nacional de Informações (SNI) e do Departamento de Ordem e Política Social (DOPS). Eles eram, respectivamente, responsáveis pela espionagem e monitoramento das atividades dos cidadãos dentro e fora do país e pela execução de todos os crimes da ditadura. Para complementar esse sistema, foi criado, em maio de 67, o Centro de Informações do Exército (CIE), que atuou na coleta de informações, na repressão direta aos opositores da ditadura e foi considerado a peça mais letal da engrenagem ditatorial. 

Passeata dos Cem Mil

No dia 28 de março de 1968, o estudante Edson Luís, de 17 anos, foi assassinado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. A violência dos policiais desencadeou uma onda de revoltas populares contra a ditadura, dando início ao movimento estudantil que, em junho do mesmo ano, formou a Passeata dos Cem Mil.

Durante a passeata, as frases de ordem incluíam “Abaixo a ditadura”, “O povo organizado derruba a ditadura” e “Libertem nossos presos”. A manifestação marcou o ápice da reação social contra o regime, resultando em uma repressão do governo. No entanto, a revolta estudantil continuou e, em outubro, mais de 900 jovens foram presos no congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE).

AI-5 e fortes repressões

Seguindo a onda de repressão, em dezembro de 1968, é baixado o Ato Institucional de número 5 (AI-5). Composto por 12 artigos, extinguiu qualquer resquício de Estado de Direito e das liberdades democráticas, conferindo poder total aos militares. Dentre outras restrições, o AI-5 concedeu ao Presidente o poder de intervenção nos Estados e Municípios e de cassação dos direitos políticos de qualquer cidadão por dez anos, fechou o Congresso e pôs fim ao habeas corpus. Após seu decreto, houve um exílio em massa de brasileiros. Foi a maior diáspora que o Brasil já viu. Dentre nomes conhecidos estão: Paulo Freire, FHC, Oscar Niemeyer, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Raul Seixas e José Serra.

Em junho de 1969 nasce a Operação Bandeirante (OBAN), com a finalidade de centralizar as investigações, conferindo maior eficiência à repressão. Localizada em São Paulo, na esquina entre as ruas Tutóia e Tomás Carvalhal, a 36ª delegacia policial foi sede da OBAN e se tornou a maior localidade de tortura e assassinatos na ditadura. No ano seguinte, para completar a máquina ditatorial, foi criado o Departamento de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). O departamento tornou-se a central de torturas e assassinatos daqueles que se opusessem à ditadura. 

Vladimir Herzog e o “começo” do fim

No dia 25 de outubro de 1975, morre sob tortura o jornalista Vladimir Herzog. O jornalista, torturado e morto no DOI-CODI, havia sido convocado para prestar depoimento na manhã de um sábado, e na tarde do mesmo dia já havia sido morto pela tortura militar. Seus assassinos forjaram um suicídio por enforcamento e divulgaram a imagem a fim de acobertar o crime. 

O que difere a história de Vlado das demais foi a repercussão de seu caso, que gerou uma forte onda de indignação. No dia 31 de outubro, uma cerimônia religiosa na Catedral da Sé reuniu cerca de 8 mil pessoas, tornando-se a primeira manifestação pública contra a ditadura desde a Passeata dos Cem Mil. Esse marco é considerado por muitos como o “começo” do fim da ditadura militar – o termo deve estar, de fato, entre aspas, pois, mesmo que as revoltas tenham se intensificado, o caminho até o fim ainda seria longo. 

Diretas Já! e o fim da ditadura

Durante os 9 anos que separam a morte de Herzog do fim da ditadura, muitas manifestações ocorreram, dentre elas o manifesto pela liberdade de imprensa, a Carta aos Brasileiros, o Movimento Negro Unificado, a greve geral dos trabalhadores e o renascimento da União Nacional dos Estudantes (UNE). Só no ano de 1979, o país teve 246 greves, que resultaram na revogação dos Atos Institucionais – de forma a estabelecer uma nova Lei de Segurança Nacional, que mantinha o poder na mão dos militares.

Em 1982, começou o processo de extinção dos DOPS. No entanto, a fim de ocultar os crimes cometidos pelos militares, houve um vasto processo de queima de arquivos e documentos, para garantir a impunidade dos torturadores – além da Lei de Anistia, implementada em 1979, para garantir que os militares saíssem ilesos. 

As manifestações pelas Diretas Já, em janeiro de 84, reuniram milhões de pessoas ao redor do país. Derrotada no congresso, a emenda das Diretas não foi aprovada. No entanto, conseguiu isolar a ditadura militar por completo, politica e socialmente. No dia 23 de novembro, o ministro do exército divulgou nota oficial confirmando que a vitória de Tancredo Neves nas eleições indiretas seria acatada pelos chefes militares – marco que pôs fim definitivo à ditadura.

Comissão Nacional da Verdade e os casos mais marcantes

Ao todo, foram 434 mortes e desaparecimentos políticos nesse período, além do assassinato de 8.350 indígenas. Esse número foi reconhecido pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) – criada em 2012 para apurar e reunir todos os crimes e os graves ataques aos direitos humanos cometidos durante a ditadura militar. Em 2014, a CNV divulgou seu relatório final, após 1121 depoimentos, 80 audiências e sessões públicas e 20 unidades da federação visitadas. 

Descargas elétricas nas orelhas e órgãos genitais; ingestão forçada de insetos; empalamento – inserção de cassetes embidos em pimenta pelo ânus até a morte; estupros e cuspes na boca; tapas e socos; mutilação dos testículos e das unhas; pau-de-arara – suspensão em barra de metal. Esses foram alguns dos métodos de tortura utilizados pelos militares.

Dentre tantas atrocidades, muitas histórias ficaram marcadas. Cada vida perdida ou ameaçada durante a ditadura deve ser lembrada, para que esse tipo de crime jamais volte a acontecer. Assim, leiamos alguns dos milhares casos de terror cometidos durante a ditadura militar.

Carlos Alexandre Azevedo

É considerado o mais jovem preso político a ser torturado no Brasil, tinha apenas um ano e oito meses quando os policiais invadiram sua casa. Sua mãe seria presa horas depois e seu pai, o jornalista Dermi Azevedo, já estava. A equipe, liderada pelo delegado Sérgio Fleury, levou o bebê até São Bernardo do Campo e o torturou por 15 horas com choques elétricos e pancadas. Carlos nunca se recuperou dos estragos que a tortura lhe causou, seguiu com acompanhamento psicológico até 2013, quando morreu de overdose medicamentosa. “Eu considero que o meu filho foi suicidado, e não se suicidou. Ele foi tão maltratado pela ditadura que acabou tirando a própria vida”, afirmou Dermi Azevedo.

Madre Maurina

A freira foi detida em 1969, no orfanato que coordenava. O lugar era usado para reuniões de jovens, mas uma das associações era disfarce para movimentação revolucionária. Madre Maurina foi capturada e torturada durante 5 meses com choque elétrico e sessões no pau-de-arara. Durante a Comissão da Verdade, foi revelado que a religiosa também era estuprada pelos torturadores.

Os irmãos Nascimento

Zuleide Nascimento tinha quatro e seus irmãos tinham dois, seis e nove anos de idade quando foram capturados e levados ao DOPS. Seus pais eram engajados na luta armada com a Vanguarda Popular Nacional e, quando o grupo foi preso, as crianças foram levadas. O mais novo presenciou torturas ao pai, e, posteriormente, os quatro foram sequestrados e levados à Argélia, depois à Cuba, e só foram autorizados a voltar ao Brasil mais de 10 anos depois.

Amelinha Teles

Maria Amélia Teles foi torturada por Carlos Alberto Brilhante Ustra – coronel elogiado por Jair Bolsonaro. Presa juntamente com o marido, a irmã e os dois filhos, Amelinha passou pelo pau-de-arara, levou choques, apanhou de palmatória e sofreu violências sexuais. Toda violência a ela cometida foi assistida pelos seus filhos, forçados pelos militares.

Aurora do Nascimento Furtado

Militante da Ação Libertadora Nacional, foi assassinada aos 26 anos de idade. Além das torturas no pau-de-arara, choques, espancamento, queimadura e afogamento, a jovem passou pela “coroa de cristo” – uma tira de aço colocada na cabeça que vai sendo apertada aos poucos até o crânio ser esmagado e os olhos saltarem. Aurora foi morta após três anos de tortura, alvejada por 29 tiros.

Iracema de Carvalho Araújo

Com apenas 11 anos na época, Iracema foi sequestrada junto à mãe pelo DOI de Recife – sua mãe era professora ligada ao Partido Comunista, e foi por isso que virou alvo do regime. Iracema perdeu 80% da visão ao ser esmurrada pelos militares, além de passar por sessões de tortura física e ser obrigada a assistir sua mãe ser agredida, espancada e eletrocutada. A criança foi deixada seminua numa praça pelos militares e nunca mais encontrou sua mãe – considerada desaparecida política.

Os resquícios da ditadura, Bolsonaro e os flertes com o golpismo

Após 60 anos, o exercício de revisitar a ditadura chega a ser assustador. Entendendo aqueles que foram elementos decisivos para o golpe, muitas semelhanças os relacionam aos recentes episódios da história brasileira. Como, por exemplo, a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que em muito se assemelha às manifestações bolsonaristas, desde a defesa do conservadorismo, dos valores tradicionais, do anticomunismo e do nacionalismo até o próprio nome da marcha, que lembra o slogan da campanha de Bolsonaro nas eleições: “Deus, Pátria, Família”.

A figura de Jair Bolsonaro frequentemente levanta discussões sobre seu posicionamento em relação à ditadura militar. Durante seu mandato, Bolsonaro muitas vezes expressou admiração por figuras da ditadura, como o comandante Carlos Alberto Brilhante Ustra – primeiro militar do regime a ser condenado pelo crime de tortura – referindo-se a ele como “herói nacional” em diversas entrevistas. Quando ainda era deputado, mencionou o torturador em seu voto a favor do Impeachment de Dilma: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff […], o meu voto é sim”

Sua retórica frequentemente inclui declarações como essa, que minimizam os crimes e violências aos direitos humanos cometidos durante o período ditatorial. Além de Bolsonaro, sua equipe de ministros e aliados também defendem abertamente a ditadura militar e buscam reescrever a história de maneira a maquiar a realidade.

O apoio de Bolsonaro às instituições golpistas influencia seus apoiadores a clamarem, assim como nos preâmbulos da ditadura, por uma intervenção militar. Guiados por esse espírito, no dia 8 de janeiro de 2023, os simpatizantes do ex-presidente invadiram e vandalizaram o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), em ataque direto à democracia e a favor de um novo golpe militar.

Em delação, feita durante as investigações que sucederam tal episódio, o ex-ajudante de Bolsonaro, Mauro Cid, revelou minuta de decreto que tinha por objetivo viabilizar o golpe. Formulada por um grupo que incluía Bolsonaro, previa uma série de medidas contra o Poder Judiciário, incluindo a prisão de ministros da Suprema Corte. Assim, guiados pela aparente tentativa de Bolsonaro em implementar um golpe de Estado, os ministros do Supremo decidiram recolher o passaporte do ex-presidente até a conclusão das investigações. 

Após seis décadas desde o início da ditadura, revisitar esse período não é apenas uma tarefa de lembrança, mas também de aprendizado. O reconhecimento das semelhanças entre o contexto pré-golpe e o período enfrentado atualmente, torna evidente a importância de preservar e fortalecer a democracia. As manifestações bolsonaristas, os flertes com o golpismo e as tentativas de acabar com as instituições democráticas devem servir como alerta.

É fundamental reafirmar nosso compromisso com os valores democráticos, com os direitos humanos e com o Estado de Direito. Somente assim, poderemos construir um futuro onde os horrores da ditadura militar jamais se repitam, garantindo um país mais justo, livre e igualitário para todos os brasileiros.

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O artigo acima foi editado por Fernanda Alves.

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Ana Beatriz Aith

Casper Libero '25

Estudante de jornalismo e ciências sociais. Apaixonada por música, política, cultura e demais temas da atualidade :)